Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. « CONCURSO PÚBLICO NA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA ». RDAI | Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura 2, no 7 (30 décembre 2018) : 405–10. http://dx.doi.org/10.48143/rdai/07.mszp.
Résumé :
A exigência de concurso público1 para investidura em cargos, empregos e funções nas entidades da administração indireta foi introduzida pelo art. 37, II, da Constituição de 1988 e repetida no art. 115, da Constituição do Estado de São Paulo.
A questão assumiu especial relevância a partir da Lei 7.773, de 8.6.89 que, ao estabelecer normas sobre a eleição para Presidência da República, proibiu os atos que, no período compreendido entre o trigésimo dia da publicação dessa lei e o término do mandato de Presidente da República, importarem em nomear, admitir ou contratar servidores da Administração Pública direta ou indireta e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e dos territórios, salvo os casos de nomeação por concurso, ascensão funcional e nomeação em comissão.
Imediatamente começaram a surgir as tentativas de contornar a exigência legal como se, escapando da lei ordinária, não esbarrasse o intérprete na norma constitucional.
Toda a questão gira em torno da expressão “administração indireta”, empregada no art. 37, caput, da Constituição, quer no art. 15 da Lei 7.773, de 8.6.89. Apesar do conceito legal da expressão contido no art. 4º do Dec.-lei 200, de 25. 2.67, conceito esse já incorporado pela doutrina e pela jurisprudência e adotado na legislação do Estado de São Paulo (que prefere a expressão “administração descentralizada”), esforços vêm sendo feitos no sentido de imprimir-lhe significado diverso, a partir do momento em que a Constituição Federal (LGL\1988\3) adotou a mesma terminologia, restringindo, sob vários aspectos, a autonomia das entidades que compõem a administração indireta.
Com efeito, o art. 4º do Dec.-lei 200/67 (LGL\1967\7) divide a Administração Pública em direta e indireta, abrangendo, esta última, as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista e, agora, também as fundações, por força da Lei 7.596, de 10.4.87. No art. 5º, define cada uma dessas entidades.
Esse decreto-lei tem sido objeto de crítica, nessa parte, por não abranger todas as entidades da administração indireta e por incluir, entre elas, algumas que não são. Com efeito, se era intenção do legislador mencionar, com a expressão “administração indireta”, as entidades que prestam serviços públicos descentralizados, ele o fez de maneira imperfeita; primeiro, porque não mencionou as concessionárias e permissionárias de serviços públicos, as quais exercem administração indireta ou descentralizada; segundo, porque só considerou como empresas públicas e sociedades de economia mista as que exercem atividade econômica, as quais não exercem atividade descentralizada.
Isto porque só existe descentralização quando o poder público desta um serviço público que lhe é próprio para transferi-lo, por descentralização, a outra entidade, com personalidade jurídica própria; ninguém pode delegar uma atribuição que não lhe pertence.
Ocorre que a atuação do Estado não se limita aos serviços públicos; ele às vezes sai da órbita de ação que lhe é própria e vai atuar no âmbito de atividade reservada essencialmente à iniciativa privada; trata-se da atividade de intervenção no domínio econômico e que se exercita por meio de empresas públicas e sociedades de economia mista, em regime de monopólio (nos casos do art. 177 da Constituição) ou em regime de competição com a iniciativa privada, conforme o determine o interesse público ou razoes de segurança (art. 173).
Não se poderia, portanto, a partir da ideia de descentralização, considerar tais empresas como entidades da administração indireta. Mas o Dec.-lei 200/67 (LGL\1967\7) o fez, o que nos leva à seguinte conclusão: somente se pode imprimir algum sentido aos conceitos de empresa pública e sociedade de economia mista, contidos no art. 5º, se se considerar a expressão “atividade econômica” em sentido amplo, abrangendo a de natureza privada (exercida a título de intervenção no domínio econômico) e a de natureza pública (assumida pelo Estado como serviço público, comercial ou industrial, como, por exemplo, o de transportes, navegação aérea, energia elétrica, luz, água etc.).
Com essa abrangência ampla dada à expressão “atividade econômica”, usada no art. 5º do Dec.-lei 200, fica superada a deficiência conceitual de empresa pública e sociedade de economia mista e chega-se a uma conclusão quanto ao sentido em que o legislador se referiu à administração indireta. Não quis referir-se à administração pública como atividade (sentido objetivo), mas como sujeito (sentido subjetivo). Desse modo, administração indireta, no art. 4º, do Dec.-lei 200, significa o conjunto de pessoas jurídicas, de direito público ou privado, criadas por lei, para o desempenho de atividades assumidas pelo Estado, como serviços públicos ou a título de intervenção no domínio econômico.
Essa distinção decorre agora, claramente, da Constituição Federal (LGL\1988\3); dentro do título concernente à ordem econômica e financeira, o primeiro capítulo contém duas normas diversas aplicáveis às empresas estatais, conforme desempenhem uma ou outra atividade:
a) O art. 173, depois de estabelecer, no caput, que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, determina, no § 1º, que “a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias; e acrescenta, no art. § 2º, que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado;
b) O art. 175 atribui ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos; o parágrafo único prevê lei que venha a dispor sobre o regime das concessionárias e permissionárias.
Diante desses dois dispositivos constitucionais, pode-se concluir que, quanto ao tipo de atividade e ao regime jurídico, existem duas modalidades de empresas estatais no direito brasileiro: as que desempenham atividade econômica com base no art. 173 e que se submetem ao regime próprio das empresas privadas, com as derrogações constantes da própria Constituição; e as que desempenham serviços públicos e que se submetem ao art. 175.
Mas a distinção que a Constituição faz entre os dois tipos de empresas para aí. Apenas no art. 37, § 6º, referente à responsabilidade civil do Estado, estende-se a norma da responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras deserviços públicos, o que exclui as empresas estatais que exercem atividade econômica. Em todos os outros dispositivos, a Constituição faz referência à “administração indireta”, sem distinguir as empresas que prestam serviços públicos e as que exercem atividade econômica.
Apenas se observa que a Constituição, em certos dispositivos, faz referência às “empresas sob controle do Estado” ou a “empresas ou sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público”. Nesses casos, ela abrange empresas de que o Estado participar acionariamente, mas que não têm natureza de sociedades de economia mista nem de empresa pública, por faltar-lhes algum requisito essencial, como, por exemplo, a exigência de criação por lei.
Senão, vejamos: no art. 22, XXVII, a Constituição fala em “Administração Pública, Direta e Indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público” e “empresas sob seu controle”; no art. 37, refere-se à “Administração Pública direta, indireta ou fundacional”; no art. 49, X, fala em fiscalização e controle dos atos do Poder Executivo, inclusive os da administração indireta; no art. 40, fala em fiscalização da “União e das entidades da Administração direta ou indireta”; no art. 71, II, ainda referente à fiscalização, fala em responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público; já no art. 74, que cuida do controle interno, faz referência a “órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos por entidades de direito privado”; no art. 165, § 5º, I e III, e no art. 169, parágrafo único, menciona “entidades da Administração Direta e Indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público”.
Apesar da falta de técnica legislativa, que levou o constituinte a empregar vocábulos diversos para designar a mesma realidade, o fato é que se há de entender que a expressão “administração indireta”, já que não definida pela Constituição, foi empregada no sentido usual do termo, adotado pela doutrina e pelo direito positivo, em especial pelo Dec.-lei 200, em vigor desde 1967. Não se pode simplesmente “fabricar” um conceito diverso, a partir do nada, quando se cuida de instituto que está definido no direito positivo brasileiro. Nem se pode dar um significado diversos à expressão, em um e outro dispositivo, conforme convenha ou não ao Poder Público.
Que o constituinte se baseou no conceito do Dec.-lei 200 é fato que se reforça quando se percebe a sua insistência em mencionar as fundações, expressamente, como se elas não fizessem parte da administração indireta. É que, pela redação original do art. 4º daquele Decreto-lei, elas não estavam mesmo incluídas, o que só ocorreu com a lei 7.546, de 10.4.87.
Portanto, quer-nos parecer que as empresas públicas e sociedades de economia mista estão incluídas, todas elas, no conceito constitucional de “administração indireta”, sejam elas prestadoras de serviços públicos ou de atividade econômica de natureza privada. Caso contrário, chegar-se-ia ao absurdo de excluir determinadas entidades do alcance de normas fundamentais, como as que se referem ao controle pelo Tribunal de Contas (art. 70, caput), à lei orçamentária anual (art. 165, § 5º), aos limites com despesa de pessoal (art. 169, parágrafo único).
Por isso mesmo, é absurda a conclusão contida no parecer CF (LGL\1988\3)-1/89, da Consultoria Geral da República (DOU de 1.11.89, seção I, p. 19.783), no sentido de que a Lei 7.773, de 8.6.89 (Lei eleitoral) não se aplica às “empresas, ainda que estatais, que visem a objetivos estritamente econômicos”. Ele parte de uma distinção correta (entre empresas que prestam serviços públicos e empresa que desenvolvem atividade econômica) para chegar a uma conclusão errada. A aceitar-se a sua conclusão, em quais critérios teríamos que nos basear para saber os dispositivos constitucionais em que a distinção é levada em consideração? Na falta de critérios objetivos, qualquer conclusão será puramente aleatória.
Em nosso livro Do direito privado na Administração Pública (Editora Atlas, 1989, pp. 117-8), fizemos a distinção entre os dois tipos de empresa, mas para mostrar que, embora aceita pela doutrina, tem sido ignorada pelo legislador: “... o legislador tem ignorado a distinção entre os dois tipos de empresas governamentais: as que prestam serviços públicos e as que exercem atividade econômica, embora fosse recomendável a submissão a regimes um pouco diversos, em que prevalecessem, nas primeiras, as normas de direito público e, nas segundas, as de direito privado. Algumas normas que se justificam com relação às empresas que prestam serviços públicos destoam quando se trata de empresas que atuam no domínio econômico, em relação às quais deve observar-se o princípio da igualdade jurídica”.
Depois de analisarmos, na mesma obra, as várias normas constitucionais e ordinárias, iguais para os dois tipos de empresas, concluímos: “No mais, portanto, impõe-se uma revisão da legislação vigente sobre empresas governamentais”.
Acontece que essa distinção deveria ter sido feita, mas não foi, de modo que se hão de aplicar as normas constitucionais sem fazer a distinção, já que não cabe ao intérprete distinguir onde a lei não distingue.
A diversa redação dos arts. 37, caput, e 39 da Constituição reforça a nossa posição. O primeiro refere-se à administração pública, direta, indireta ou fundacional, enquanto o segundo, ao tratar dos servidores públicos civis, trata da instituição de regime jurídico único para “os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas”. Isto quer dizer que os princípios inseridos no art. 37 têm uma abrangência muito maior do que o do segundo, já que este não incide sobre as empresas estatais e fundações de direito privado, enquanto o primeiro alcança todas essas entidades.
Cabe, ainda, uma referência à Instrução Normativa 9/89, do Tribunal de Contas do Estado, publica no DO de 28.7.89, pp. 30-1, que, para fins de apreciação da legalidade e registro dos atos de admissão de pessoal, exige, dos órgãos da administração direta e autárquica, “cópia ou recorte de publicação de editais de abertura de concurso público” e, dos órgãos da administração indireta, compreendendo empresas, sociedades de economia mista e fundações, “prova de realização de processo seletivo para admissão na forma dos respectivos regulamentos internos...”
Se não se quiser atribuir ao Tribunal de Contas a veleidade de descumprir a norma contida no art. 37, II, da Constituição, tem-se que entender a diferença de terminologia no sentido de que o procedimento de seleção de pessoal empregado nas entidades da administração indireta pode ser diverso do concurso estabelecido para a administração direta e autárquica. Mas, de qualquer forma, há de se entender que o processo seletivo ou qualquer outro que se dê ao concurso, seja público, ou seja, aberto a todos os interessados.
A conclusão, portanto, é no sentido de que todas as entidades da administração indireta, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, qualquer que seja o tipo de atividade exercida, sujeitam-se à exigência de concurso público para admissão de pessoal, não apenas no período eleitoral, mas enquanto permanecer em vigor a regra do art. 37, II da Constituição Federal (LGL\1988\3), que teve evidente intuito moralizador, principalmente quando se sabe do procedimento usual da Administração Pública de admitir pessoal nessas entidades, com maiores salários e sem concursos, para prestação de serviços na administração direta, com flagrante ofensa até ao princípio da isonomia, pois coloca em situação de desigualdade servidores que trabalham lado a lado, no exercício de idênticas atribuições, porem com remuneração diversa.