Mello, Oswaldo Aranha Bandeira de. "Tribunais de contas – natureza, alcance e efeitos de suas funções." Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura - RDAI 5, no. 16 (January 9, 2021). http://dx.doi.org/10.48143/rdai/16.bandeirademello.
Abstract:
O orçamento é o ato jurídico em que se faz a previsão da receita, autorizando a sua arrecadação, e a fixação da despesa, autorizando, outrossim, a sua execução, relativas a determinado exercício financeiro.
Embora o conteúdo do orçamento diga respeito à matéria de Direito Financeiro, pertinente à disciplina da receita e da despesa, a natureza jurídica da fiscalização da execução do orçamento se mantém no campo do Direito Administrativo, não obstante se utilize das normas de contabilidade pública e de técnica econômico-financeira para levá-la a cabo. Destarte, permanece no Direito Administrativo o estudo dos órgãos de controle do Estado quanto a atividade dos ordenadores da despesa e pagadores de contas, e os atos jurídicos de efetivação desse controle.
Esse controle da execução do orçamento se faz através do Poder Executivo, por órgão do Ministério da Fazenda ou das Finanças, que acompanham a gestão financeira dos diferentes órgãos do Estado, e se denomina fiscalização interna; e, através do Poder Legislativo, valendo-se de pareceres de suas Comissões de Finanças ou Tomadas de Contas, e, especialmente, de órgão administrativo, autônomo, de cúpula colegiada ou individual, seu delegado, e auxiliar, ou melhor, colaborador, na verificação das contas dos órgãos do Estado, independente do Poder Executivo, e esse controle se denomina fiscalização externa.
Ao Legislativo compete não só a aprovação do orçamento como a fiscalização última da sua fiel execução. Objetiva garantir o efetivo cumprimento do orçamento, quanto a receita e despesa. Sem a devida tomada de contas, os orçamentos se constituiriam em formalidades inúteis e seria impossível a apuração de responsabilidade dos agentes ordenadores e pagadores da despesa.
Como órgão auxiliar do Legislativo nessa tarefa de controle de contas do Executivo se cogitou, nos países latinos da Europa, do Tribunal de Contas, também denominado Conselho de Contas ou Corte de Contas, cujos membros, chamados Ministros ou Conselheiros, gozam de imunidades que asseguram a sua independência. Esse órgão, apesar de exercer uma função administrativa, repita-se, a efetiva em caráter autônomo, e sem qualquer liame com o Chefe do Executivo.
Já na Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte, dito controle se faz através de Auditoria, General Accounting Office superintendida por Auditor-Geral, General Comptroller and Auditor, com garantias equivalentes às que se atribuem à magistratura, e, outrossim, em posição de absoluta independência dos órgãos governamentais controlados, inclusive do Chefe do Executivo.
O exame das contas pode ser feito através de três processos diferentes que originaram os sistemas de exame prévio absoluto ou relativo, e do exame posterior.
O exame prévio absoluto é aquele em que o veto do órgão fiscalizador externo impede os órgãos executivos e ativos a efetuarem a despesa em negando o seu registro, e, então, não pode ser feita. Esse veto absoluto é utilizado nos casos de falta de verba para essa despesa ou ter sido cogitada por verba imprópria. É o sistema acolhido pelo Tribunal de Contas da Itália, e, por isso, denominado de tipo italiano.
Já o exame prévio relativo é aquele em que o veto do órgão fiscalizador externo, em considerada ilegal a despesa, nega-lhe o registro, e devolve a documentação aos órgãos executivos ativos com as razões do veto. Se os órgãos superiores do Executivo não se conformarem com o veto, solicitam ao órgão fiscalizador externo que faça o registro sob protesto. Após essa formalidade, ele dá ciência ao Legislativo do ocorrido, para que apure a responsabilidade dos órgãos executivos ativos, que levaram a efeito a despesa. Foi o sistema escolhido pelo Tribunal de Contas da Bélgica, e, por isso denominado de tipo belga.
O exame posterior é o que a verificação da despesa se faz ao depois de efetuada. Elas não são evitadas pelo órgão de fiscalização externa, a quem cabe apenas providenciar em última análise, a punição dos culpados. Foi o sistema escolhido pelo Tribunal de Contas da França, e, por isso, denominado de tipo francês.
O sistema do exame prévio absoluto adotado é conciliável com os outros dois, conforme a legislação, com referência a ato da Administração Pública de que resulte obrigação de pagamento pelo Tesouro Nacional ou por conta deste. Isto se verifica quando a recusa de registro tiver outro fundamento que a falta de verba ou disser respeito a verba imprópria, e, então, a despesa pode efetuar-se sob reserva ou protesto do órgão controlador externo, em determinada pelo Executivo a sua realização.
Outrossim, ocorre o controle posterior quando, nos termos da legislação, o órgão controlador externo tem o encargo de exame do orçamento, após a sua execução, na apreciação das contas do Executivo, mediante relatório a ser oferecido ao Legislativo.
Por seu turno, o sistema do veto relativo adotado é conciliável com o do exame a posteriori dos atos da Administração Pública, como seja, valendo-se do mesmo exemplo acima, quando compete ao órgão controlador externo a apresentação de relatório das contas do Executivo, em apreciando a execução por ele do orçamento, a ser, depois do exercício financeiro, encaminhado ao Legislativo.
Tem o Congresso Nacional a função de fiscalizar os atos do Poder Executivo, bem como da administração indireta, e com as prerrogativas que lhe reconheça e lhe dê a lei, consoante dispõe o art. 45, da Magna Carta de 69, e, destarte, a Câmara dos Deputados e o Senado ou o próprio Congresso Nacional podem criar comissões de inquérito para a devida fiscalização a respeito.
O Tribunal de Contas nasceu, realmente, na ordem jurídica pátria, somente com o Dec. 966-A, de 7.9.1890, que adotara o modelo belga. Isso logo após a proclamação da República, por ato do Governo Provisório. Ao Tribunal fora atribuída não só a fiscalização das despesas e de outros atos que interessem às finanças da República, como o julgamento das contas de todos os responsáveis por dinheiros públicos de qualquer Ministério a que pertencessem, dando-lhes quitação, ou ordenando-os a pagar o devido e quando isso não cumprissem, mandava proceder na forma de direito.
A Constituição de 1891, simplesmente previu, ao dispor, no art. 89, sobre a instituição de um Tribunal de Contas, para liquidar as contas de receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso. Relegou, porém, para a Legislação ordinária a sua inteira organização. Posteriormente, todas as Constituições Republicanas o inseriram entre os seus dispositivos. Já as demais estabeleceram as linhas fundamentais desse órgão governamental.
Valendo-se de autorização que lhe dera o Congresso Nacional pela Lei 23, de 30.10.1891, para organizar os serviços dos Ministérios, e pela Lei 26, de 30.12.1891, para organizar as repartições da Fazenda, o Poder Executivo promulgou o Dec. 1.166, de 17.12.1892, em que cogitou o Tribunal de Contas previsto pelo texto constitucional citado. Deu-lhe a competência de exame prévio das contas do Executivo e poder de veto absoluto, quanto às despesas, e, outrossim, conferiu-lhe a atribuição de julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou valores públicos, emprestando às suas decisões força de sentença, uma vez lhe reconhecia nessa função atuava como Tribunal de Justiça.
E essa situação não se alterou na legislação posterior, até a promulgação da Constituição de 1934.
Porém, essa última competência, qual seja, de julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou valores públicos, consoante demonstração do Prof. Mário Masagão (cf. “Em face da Constituição Federal, não existe, no Brasil, o Contencioso Administrativo”, pp. 137 a 175, Seção de Obras do Estado de S. Paulo, S. Paulo, 1927), em completo estudo sobre o contencioso administrativo no Brasil, devia ser havida como inconstitucional, isso porque a Constituição de 1891 revogara, diretamente, esse instituto estabelecendo a jurisdição una, afeta, em exclusividade, ao Poder Judiciário, ex vi do seu art. 60, “b” e “c”. Aliás, nesse sentido, já haviam se manifestado Ruy Barbosa (cf. Comentários à Constituição, coligidos por Homero Pires, vol. IV, pp. 429 e ss) e Pedro Lessa (cf. Do Poder Judiciário, p. 149).
Como órgão de função administrativa, preposto do Poder Legislativo, como seu auxiliar, na verificação da gestão financeira do Estado, na verdade, pela sua própria natureza, não podia ter funções jurisdicionais. Aliás, o art. 89, citado, da Constituição de 1891, só lhe confiara aquela atribuição administrativa. Inconstitucional seria, portanto, através de lei ordinária, não só diminuí-la, como, e, principalmente, aumentá-la, dando-lhe função jurisdicional.
As Constituições que se seguiram à Constituição de 1891, como salientado, mantêm o Tribunal de Contas por esta instituído e lhe dão as linhas mestras da sua organização, especificam o sistema de controle das contas adotado, e definem as suas competências.
As Constituições de 1934 (cf. §§ 1.º e 2.º do art. 101) e de 1946 (cf. §§2.º e 3.º do art. 77) adotaram o sistema italiano de controle da conta, ou melhor, do veto prévio absoluto, proibitivo, com referência às despesas pretendidas em que houvesse falta de saldo no crédito ou que tivessem sido imputadas a crédito impróprio, e do veto prévio relativo, quando diverso fosse o fundamento da recusa, quanto à despesa em causa, e, ainda, o controle a posteriori relativamente a outras obrigações de pagamento. No caso de veto prévio relativo a despesa poderia efetuar-se após despacho do Presidente da República, feito, então, o registro sob reserva, com recurso de ofício à Câmara dos Deputados, segundo a Constituição de 1934, e ao Congresso Nacional, conforme a Constituição de 1946.
Já as Constituições de 1937, 1967 e 1969 silenciam a respeito. Mencionam apenas as atribuições do Tribunal de Contas sem cogitar do regime de controle. Contudo, dos termos das Constituição de 1967 (art. 71, e parágrafos, e §4.º do art. 73) e Magna Carta de 1969 (art. 70 e parágrafos, e §4º do art. 72) se conclui que optaram, em princípio, pelo sistema francês, do controle a posteriori, com ligeiras restrições, ao admitirem a faculdade de o Tribunal, de ofício, ou mediante provocação do Ministério Público, ou das autoridades financeiras e orçamentárias, e demais órgãos auxiliares, verificar a ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos.
A auditoria financeira e orçamentária será exercida sobre as contas das unidades administrativas dos três Poderes da União, que, para esse fim, deverão remeter demonstrações contábeis ao Tribunal de Contas, a que caberá realizar as inspeções que considerar necessárias (art. 79, §3.º de 69). Esses são os elementos necessários para as inspeções levadas a efeito pelo Tribunal de Contas, através dos seus órgãos de auditoria, e compreendem perícias, apuração de pagamento e de sua pontualidade, verificação do cumprimento das leis pertinentes à atividade orçamentária e financeira.
Todas essas normas de fiscalização aplicam-se às autarquias, que consistem em pessoas jurídicas criadas pelo Estado, com capacidade específica de direito público na realização de objetivo administrativo (§5.º do art. 70 de 69). Por isso, como seus órgãos indiretos se acham enquadrados no todo estatal, embora seres distintos do Estado, ante a sua personalidade. Formam com ele uma unidade composta. Têm atributos de império, obrigação de agir, são criados por processo de direito público, sem objetivo de lucro e se sujeitam à fiscalização estatal. Distinguem-se em autarquias associativas e fundacionais (cf. Princípios Geral de Direito Administrativo, vol. II, p. 233).
Deverá o Tribunal de Contas, em face da Constituição e no caso de concluir tenha havido qualquer irregularidade a respeito: a) assinar prazo razoável para que o órgão da administração pública adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei; b) sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, exceto em relação a contratos; c) solicitar ao Congresso Nacional, em caso de contrato, que determine a medida prevista na alínea anterior ou outras necessárias ao resguardo dos objetivos legais.
Observe-se, a sustação do ato que refere a alínea “b” poderá ficar sem efeito se o Presidente da República determinar a execução, ad referendum do Congresso Nacional, sujeitando, portanto, essa ordenação apenas a controle a posteriori do Congresso Nacional (cf. Constituição de 1967, §8.º, do art. 73; de 1969, §8.º do art. 72). O Congresso Nacional deliberará sobre a solicitação de que cogita a alínea “c”, no prazo de 30 dias, findo o qual, sem pronunciamento do Poder Legislativo, será considerada insubsistente a impugnação (cf. Constituição de 1967, §5.º, “a”, “b” e “c”, e §6.º do art. 73; de 1969, §5.º, “a”, “b” e “c”, e §6.º do art. 72).
Merece crítica as disposições que têm como insubsistente a falta de pronunciamento legislativo no prazo legal a ele cominado. A solução devia ser exatamente a outra, isto é, tornando a sustação definitiva, adotada, aliás, pela Constituição Paulista no seu art. 91, III. Igualmente, a orientação adotada em admitindo a possibilidade do Presidente da República de ordenar a execução do ato considerado pelo Tribunal de Contas ilegal, submetendo-o ao referendum do Congresso, mas só depois de perpetrada a ilegalidade, outrossim, merece crítica. Envolve, sem dúvida, completa falência do controle do Tribunal de Contas.
Por outro lado, regulam a Constituição de 1967 e a Magna Carta de 69 do controle interno da execução do orçamento. Realmente, dispõem que o Poder Executivo manterá sistema de controle interno, a fim de: I – criar condições indispensáveis para assegurar eficácia ao controle externo e regularidade à realização da receita e da despesa; II – acompanhar a execução de programas de trabalho e a do orçamento; e III – avaliar os resultados alcançados pelos administradores e verificar a execução dos contratos (1967, art. 72; de 1969, art. 71). Mas, as censuras acima feitas mostram ser de nenhum efeito essas pretendidas cautelas, pois indiretamente com os textos anteriormente criticados, nulificam, como salientado, o real controle de resultados práticos do Tribunal de Contas.
A respeito dos textos criticados, a Constituição de 1934 dispunha que os contratos que, por qualquer modo, interessassem imediatamente à receita ou à despesa, só se reputariam perfeitos e acabados, quando registrados pelo Tribunal de Contas, e que a recusa de registro suspendia a sua execução até o pronunciamento do Poder Legislativo (art. 100). Igual preceito constava na Constituição de 1946 (art. 77, §.1º). Texto semelhante impunha-se tivesse sido acolhido pela Constituição da República Federativa do Brasil e das Constituições dos Estados. Destarte, estariam libertas das críticas anteriormente feitas a respeito.
Tendo a Carta de 1937 deixado a completa organização do Tribunal de Contas à lei ordinária (parágrafo único do art. 114) apenas dispôs que competiria a ele acompanhar, conforme já dispunha a de 1934, diretamente ou por delegações organizadas, de acordo com a lei, a execução orçamentária; julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos; e da legalidade dos contratos celebrados pela União.
Essa tríplice competência foi repetida pelas Constituições que se lhe sucederam de 1946 (art. 77, I, II e III), de 1967 (§1.º do art. 72, §§ 5.º e 8.º do art. 73), e de 1969 (§1.º do art. 71, §§5.º e 8.º do art. 73), e de 1969 (§1.º do art. 71, §§5.º e 8.º do art. 73). E a elas se acrescentou a de julgar a legalidade das aposentadorias, reformas e pensões.
Salvo a Carta Magna de 37, todas elas cogitam do parecer prévio do Tribunal de Contas, no prazo de 30 dias, segundo a Constituição de 1934 (art. 102) e de 60 dias segundo as demais (de 1946, §4.º, do art. 77; de 1967, §2.º do art. 71; de 1969, §2.º do art. 70) sobre as contas que o Presidente da República deve prestar, anualmente, ao Congresso Nacional. E, se elas não lhe forem enviadas no prazo da lei, comunicará o fato ao Congresso Nacional, para os fins de direito, apresentando-lhe num e noutro caso, minucioso relatório do exercício financeiro encerrado.
Sem dúvida a Constituição de 1967 e a Magna Carta de 1969 através dos seus textos retrogradaram quanto a fiscalização de maior relevo que deve caber ao Tribunal de Contas, qual seja a de fiscal da administração financeira, como preposto do Legislativo. Sem o veto absoluto nos casos de falta de saldo no crédito e nos de imputação a crédito impróprio, a atuação do Tribunal de Contas deixa de ter sua razão de ser.
Sem sentido se nos afigura a opinião de alguns que declaram terem sido aumentados os poderes do Tribunal de Contas, pelos textos da Constituição de 67 e Magna Carta de 69, ante a possibilidade que lhe cabe hoje de acompanhamento do desenvolver do orçamento, mediante inspeções especiais, levantamentos contábeis, e representação, que lhe compete, ao Poder Executivo e Congresso Nacional, sobre irregularidades e abusos, inclusive as decorrentes de contrato, pois lhes falta a possibilidade de impedir, de forma coercitiva e absoluta, despesas irregulares.
Disse com razão Ruy Barbosa: não basta julgar a administração, denunciar o excesso cometido, colher a exorbitância ou a permissão para punir. Circunscrita a estes limites essa função tutelar dos dinheiros públicos será, muitas vezes, inútil por omissa, tardia ou impotente.
Não é de outro sentir Dídimo da Veiga quando afirmou: “O exame a posteriori ou sucessivo deixa consumar-se a despesa para depois fiscalizar a legalidade da mesma, sendo de todo o ponto ilusória a responsabilidade do ordenador, que nunca se torna efetiva, e a do pagador, sempre que a despesa paga for de cifra tão elevada que exceda o valor da caução prestada e dos bens do responsável; a fazenda pública vê-se lesada, fica a descoberto de qualquer garantia, o que, de per si só, é suficiente para coordenar o regimem da contrasteação ex post facto”. (Relatório do Tribunal de Contas de 1899, p. 13).
É de lamentar-se essa restrição aos poderes do Tribunal de Contas, muito ao gosto das ditaduras e dos governos de fato. É de lamentar-se, mais ainda, que as Constituições estaduais tenham seguido essa mesma orientação.
Vale a pena recordar-se que quando se quis extinguir a fiscalização prévia, com veto absoluto, no Governo Floriano Peixoto, seu Ministro da Fazenda, Seserdelo Correia, pediu exoneração do cargo, e teve oportunidade de dizer em carta ao Presidente a respeito do veto impeditivo. “Longe de considerá-lo um embaraço à administração, eu o considerava o maior fiscal da boa execução do orçamento”. E prosseguia acertadamente: “Se a despesa está dentro do orçamento, se existe verba ou se tem recurso a verba, o Tribunal não pode deixar de registrá-la. Se não existe ou está esgotada, é o caso dos créditos extraordinários ou suplementares”.
O registro sob protesto, isto é, do veto relativo não basta para essas hipóteses retro apontadas, para conter os abusos dos governantes e evitar desmandos financeiros. Claro, quando a recusa do registro tiver outro fundamento ele se explica, e então o registro se faz sob reserva. O controle posterior se tem aplicado como elemento complementar, na apreciação de comportamento dos ordenadores e pagadores de despesa para efeito de parecer sobre as contas ao Congresso, e consequente apuração de responsabilidade.
Em que pese opiniões em contrário, se nos afigura perfeitamente possível, sem que ocorra a pecha de inconstitucionalidade, adotem os Estados federados e os Municípios, o veto absoluto e o relativo, conforme as hipóteses, na organização dos seus Tribunais de Contas, no exercício das respectivas autonomias, asseguradas pelos arts. 13 e 15, respectivamente, da Emenda 1/1969.
As matérias pertinentes aos Tribunais de Contas se enfocam em dois ramos jurídicos: o Direito Financeiro e o Direito Administrativo.
As matérias de Direito Financeiro, na verdade, são de competência prevalente da União, ex vi do art. 8.º, XVIII, “c”, da Magna Carta de 69, ou seja, de estabelecer, através de textos legislativos, normas gerais sobre orçamento, despesa e gestão patrimonial e financeira de natureza pública, e, pois aos Estados compete apenas legislar, supletivamente, sobre elas, segundo o parágrafo único do citado art. 8.º, XVII, “c”.
Já as matérias de Direito Administrativo, em especial sobre a organização dos seus órgãos, cabem aos Estados pois assistem-lhes todos os poderes que não lhes foram vedados, por texto constitucional. Incumbe-lhes, então, e tão-somente, respeitar os princípios constitucionais, na Magna Carta de 69. Por conseguinte, afora as competências que lhes foram proibidas, hão de obedecer apenas as limitações que defluem dos princípios estruturais do regime pátrio, constantes da Constituição Federal. Portanto, cumpre aos Estados federados, ao organizarem o respectivo Tribunal de Contas, a observância do princípio de prestação de contas da administração, segundo art. 10, VII, “f” e mais elaboração do orçamento, bem como a fiscalização orçamentária, conforme o art. 13, IV.
A conjugação desses dois princípios faz com que para efetivá-los devam instituir Tribunais de Contas, com as restrições expressas de que os seus membros não poderão exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo um cargo de magistério e nos casos previstos nesta Constituição; receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, percentagens nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento, e não deverão exceder de sete, em consonância com o art. 13, IX da CF.
Afora essas delimitações aos poderes dos Estados Federados, constantes dos textos suprarreferidos, nenhuma outra foi prevista, e como a eles são conferidos todos os poderes que, explícita ou implicitamente, não lhes tenham sido vedados pela Constituição Federal, como dispõe o §1.º do art. 13, é indiscutível, a nosso ver, ao organizarem os seus Tribunais de Contas, podem fazê-lo com liberdade, em escolhendo para efeito do controle financeiro o sistema que mais lhes convenha. Assim o de veto prévio absoluto quanto as despesas em que inexista verba ou esta seja imprópria.
Certo, o art. 188 da Constituição de 67, reproduzido no art. 200 da Carta de 69, invocado pelos que negam essa possibilidade, não configura o referido impedimento. Realmente, os artigos em apreço dispõem que as disposições nela constantes ficam incorporadas, no que couber, ao direito constitucional legislado pelos Estados. Com isso se pretendeu, na melhor das hipóteses, que os Estados devem adotar, no mínimo, o modelo imposto pela Carta Federal, com referência ao controle financeiro, os princípios básicos constantes dessas Constituições em referência. Eles constituem o paradigma mínimo a serem obedecidos pelos Estados, tendo em atenção o modelo federal. Mas, nada impedem melhorem o sistema federal de controle das contas estaduais e o torne mais severo. Não lhe impuseram completa simetria de organização, o que seria absurdo em um Estado federal, de grande extensão territorial, e em que as unidades federativas são de áreas díspares e com diversidade de população, e de civilização e cultura distintas.
Assim sendo, deverá o Tribunal de Contas do Estado, como mínimo tão-somente:
I – exercer o controle externo da administração financeira do Poder Executivo e entes autárquicos, como colaborador da Assembleia Legislativo neste mister;
II – apreciar, em parecer, as contas anuais da Administração Pública, e elaborar relatório quanto ao exercício financeiro, mediante a ajuda de auditoria, tomar as contas dos administradores e outros responsáveis pelo dinheiro público, e verificar da legalidade das aposentadorias, reformas e pensões;
III – gozar de autonomia interna corporis dos Tribunais Judiciários e desfrutar os seus membros de situação equiparável aos magistrados dos Tribunais de Justiça;
IV – satisfazer a nomeação dos seus membros os requisitos previstos para nomeação dos magistrados;
V – representar ao Poder Executivo e à Assembleia Legislativa dando notícia de atos irregulares ou abusos verificados quanto a administração financeira e orçamentária;
VI – sustar os atos da administração financeira quando exaurido o prazo a ela assinado para sua regularização, bem como solicitar à Assembleia Legislativa, em casos de contratos firmados pela administração, as medidas para resguardo da regularidade dos objetivos legais, acaso desrespeitados.
Aliás, se realmente fosse negado aos Tribunais de Contas Estaduais ampliar e melhorar o sistema adotado pela União, a fim de torna-los mais aptos, à consecução da sua função, quanto a organização do próprio órgão e a sua ação fiscal, seria praticamente anular a autonomia dos Estados, assegurada pelo art. 13 da Magna Carta de 69, e, consequentemente, ter como revogada a Federação, firmada no art. 1.º dela, e cuja abolição, mediante reforma constitucional, sequer pode ser objeto de deliberação proposta nesse sentido, ante o art. 47, §1.º. Em consequência, são livres de organizar o órgão e a sua ação desde que respeitem, no mínimo, quanto a organização as normas dispostas pela União e quanto a sua ação ao figurino mínimo pertinente ao controle fiscal estabelecido pela União. Parece absurdo sustentar-se que está o Estado, pela Carta de 69, impedido de melhorar a organização de seu Tribunal e de tornar mais efetiva a sua fiscalização financeira.
Como já salientado, a Magna Carta de 69 assegurou no art. 15 a autonomia dos Municípios. Admitiu a intervenção do Estado nos seus negócios quando deixarem de respeitar princípios insertos no §3.ª desse artigo. E entre eles, está o de prestação das contas devidas nos termos da lei, conforme já previsto no inc. II do citado art. 15. Consequentemente, no art. 16 estabeleceu que a fiscalização financeira e orçamentária será exercida mediante controle externo da Câmara Municipal e controle interno do Executivo municipal, instituídos por lei. E no §1.º dispõe: “O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado ou órgão estadual a que for atribuída essa incumbência”. Destarte, admitiu o Estado entregue tal encargo ao seu Tribunal de Contas ou a órgão estadual para tanto criado e a quem caberá essa competência.
Embora em caráter de colaboração à Câmara Municipal, o parecer prévio desses órgãos estaduais só deixará de prevalecer, segundo o §2.º desse artigo, mediante decisão de 2/3 daquela. Dessa forma ficaram postas balizar aos abusos das Câmaras Municipais sob a força de pressão da política. Restrições maiores comprometeriam a autonomia do Município. Para evitar esses abusos dos governantes municipais, sem tolher a autonomia, está na adoção pelos Estados do veto prévio absoluto e relativo, com referência aos Municípios nos termos que devem ser preconizados para o Tribunal de Contas do próprio Estado, com referência ao seu controle financeiro.
Discute-se sobre a possibilidade de, em existindo Tribunal de Contas nos Estados, haver possibilidade de ser por ele criado órgão estadual com o encargo de proceder a fiscalização financeira dos Municípios, como auxiliar do controle externo das Câmaras Municipais. Entendem uns a dejuntiva ou do texto constitucional faz com que só se possa admitir a criação desse órgão em inexistindo Tribunal de Contas do Estado. Já outros sustentam a permissibilidade da criação desse órgão para efeito de descongestionar os Tribunais estaduais. Estes restringiram o seu controle contábil financeiro às contas do Estado federado, e o outro órgão se destinaria a igual controle dos Municípios. Aliás, só desse sentido se pode compreender a palavra “ou” intercalada entre as duas hipóteses, isto é, uma “ou” outra.
Afigura-se-nos mais consentânea com a verdade a tese da última corrente, não obstante tenha havido pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em favor da outra. Aliás há também decisão desse Tribunal em outro sentido. A fiscalização se fará por um ou outro órgão pertinente.
Adotada a primeira orientação, ainda há de ter-se como sem sentido a previsão constitucional de outro órgão, além do Tribunal de Contas, para o referido controle, porquanto todos os Estados, obrigatoriamente, devem ter Tribunais de Contas, ex vi do art. 13, IX, da CF, completado pelo art. 200 que determina a incorporação, no que couber, das disposições constantes da Carta Federal, ao direito constitucional dos Estados. Demais, o trabalho que fica a cargo dos Tribunais de Contas dos Estados, quanto ao controle fiscal da sua atuação, pode perturbar o serviço desse Tribunal para efetivar, realmente, o controle financeiro dos Municípios, e, então, se explica a criação desse órgão especial distinto dos Tribunais de Contas, a critério do legislador estadual.
Esse órgão autônomo estadual, no entanto, deverá gozar de regalias que assegurem a sua independência quanto a força de pressão política, a fim de poder exercer, com absoluta isenção, a sua atividade de auditoria, seja ele colegiado ou sob a orientação singular de um auditor-chefe.
Contudo, os municípios, ante o §3.º, do art. 16, da Magna Carta de 69, com população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima de quinhentos milhões de cruzeiros novos, podem eles próprios instituir Tribunais de Contas. E estes devem respeitar, na sua organização e ação, os princípios mínimos adotados pela Constituição Federal nos arts. 72 e parágrafos e mais outras normas aperfeiçoando-os, como seja o veto absoluto nos casos de falta de verba ou de verba imprópria, e o veto relativo quanto a outras despesas.
Já o Município de São Paulo, em virtude do art. 191, ficou assegurado, e tão-somente a ele, a continuidade do seu Tribunal de Contas, salvo deliberação em contrário da respectiva Câmara, enquanto os demais Tribunais de Contas Municipais foram declarados, por esse mesmo termo, extintos.
O Tribunal de Contas do Município de São Paulo pode ser reorganizado, e quanto a sua ação, como os novos Tribunais de Contas em outros Estados, dos respectivos Municípios em que vierem a ser criados, satisfazendo as exigências do §3.º do art. 16.
Além de obedecerem ao modelo federal, nos seus contornos mínimos, cumpre aos Tribunais Municipais obedecerem aos textos mínimos dispostos na Constituição Estadual e na Lei Orgânica dos Municípios. Mas podem estabelecer controle mais extenso a eles quanto ao orçamento, conforme salientado.
Afinal, pondere-se: é incrível que a Constituição Paulista haja, no art. 75, disposto que nenhuma despesa será ordenada ou realizada sem que exista recurso orçamentário ou crédito votado pela Assembleia, e tenha deixado de, expressamente, prever o veto absoluto do Tribunal de Contas, tanto do Estado como do Município da Capital, ao dispor sobre as suas competências a respeito.
A expressão julgar as contas dos responsáveis pelos dinheiros e bens públicos, bem como da legalidade dos contratos e das concessões iniciais de aposentadorias, reformas e pensões, ensejou dúvidas na doutrina e na jurisprudência, qual seja, se ao empregar a expressão “julgar” os constituintes cogitaram de atribuir ao Tribunal de Contas funções jurisdicionais ou não.
Quanto à última, de julgar da legalidade dos contratos, firmou-se orientação de que se tratava de função administrativa, empregada impropriamente a palavra “julgar” no texto, porquanto a decisão do Tribunal de Contas só tinha o efeito de suspender a sua execução até que se pronunciasse a respeito o Congresso Nacional. Funcionava, destarte, como órgão auxiliar do Poder Legislativo, sem caráter jurisdicional, mas tão-somente administrativo. Já quanto à primeira, de julgar as contas, prevaleceu a orientação de que se tratava de função jurisdicional, atribuída ao Tribunal de Contas.
Procurou-se distinguir a expressão “julgar da legalidade” da de “julgar as contas”, por empregado o verbo em regência diversa pelos constituintes.
Ora, o “julgar” no sentido de lavrar ou pronunciar sentença não pede objeto direto, diz-se “julgar do direito de alguém”. Já o “julgar” no sentido de avaliar, entender, pede objeto direto, diz-se “julgo” que tem razão (cf. Cândido de Figueiredo, verbete “julgar”, in Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 3.ª ed., vol. II, Portugal-Brasil, s/d). Por conseguinte, a alteração da regência prova contra a tese dos que pretendem a expressão “julgar as contas” corresponda à de sentenciar, ou seja, de exercício da função jurisdicional. Na verdade, essa regência do verbo, ao contrário da outra de “julgar da legalidade”, autoriza a conclusão de que a expressão “julgar as contas” se refere ao significado de avaliá-las, entendê-las, reputá-las bem ou mal prestadas, jamais no sentido de sentenciar, de decidir a respeito delas.
Observe-se, as Constituições de 1967 e 1969 separaram em dispositivos diferentes as duas atividades quais sejam: de julgar da legalidade dos contratos; e de julgar da legalidade das concessões iniciais de aposentadoria, reformas e pensões, juntos no mesmo item da Constituição de 1945. Quanto à primeira, isto é, legalidade dos contratos estabeleceram o princípio do recurso de ofício ao Congresso Nacional da sua deliberação. Já relativamente à segunda, ou seja, legalidade da aposentadoria, reformas e pensões, nada dispuseram a respeito, com referência à sua deliberação. Entretanto, nesta última hipótese, também, não se teve como definitiva a decisão do Tribunal de Contas. Se deixada de ser registrada pelo Tribunal de Contas, isso não impediria a sua efetivação, em mantido o ato pelo Executivo. Então, far-se-ia o registro sob protesto desses atos. Poderia, ainda, sem dúvida, em face dos textos constitucionais (1946, art. 77, III, §3.º e art. 141, §4.º; 1967, art. 73, §5.º, “b”, e art. 151, §4.º; e 1969, art. 72, §§5.º, “b”, e 8.º) o interessado interpor recurso ao Judiciário para defesa de seu direito individual acaso desconhecido, se entendesse ter direito à aposentadoria ou reforma e a sua família, se negada a pensão.
Os adeptos da competência jurisdicional do Tribunal de Contas, no caso de julgar as contas dos responsáveis pelos dinheiros e bens públicos, sustentam que o fato do reconhecimento do alcance pelo Tribunal de Contas há de ser aceito sem discussão pelo Poder Judiciário. Concordam, no entanto, que a recusa na aceitação das contas, envolve apenas o reconhecimento, pelo Tribunal de Contas, de alcance por parte do ordenador da despesa ou seu pagador, pois a condenação, por crime de peculato, depende de sentença judicial do Poder Judiciário, e a condenação cível do débito, para efeito de indenização ao Poder Público, depende, também, de sentença judicial do Poder Judiciário. Destarte, ao Tribunal de Contas cabe decisão prejudicial sobre o fato. Porém, a condenação, pela prática do ilícito penal ou civil, na verdade, cabe ao Poder Judiciário, e mais a execução da sentença.
Data venia, desses mestres, há de entender-se que, em ambas as hipóteses, o Tribunal de Conta só possui função administrativa de acompanhar a execução orçamentária e apreciar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos. Com isso se não diminui o relevo do Tribunal de Contas, ao contrário se projeta na sua específica função de implantar a moralidade pública, de ordem administrativa, na fiscalização do orçamento. Na organização jurídica do Estado todos os órgãos são de igual importância no exercício de suas respectivas funções, cada uma imprescindível ao Estado de Direito. E de tal realce é a do Tribunal de Contas, que se encontra fora da concepção tríplice dos três poderes, e a quem cabe a fiscalização econômico-financeira da atividade de todos eles.
Não teve o texto em causa, no entanto, o objetivo de investi-lo no exercício de função judicante, quando se expressou que lhe caberia julgar as referidas contas. Visou apenas lhe conferir a competência final na ordem administrativa sobre o assunto. Se tida como bem prestadas, está encerrado o trabalho pertinente à sua apuração, com a quitação que mandaria passar a favor dos que as ofereceram. Ao contrário, se entender caracterizado alcance quanto a dinheiro ou bem público, no exercício dessa função, determinará que paguem o considerado devido, dentro do prazo fixado, e, não satisfeita a determinação, lhe caberá proceder contra eles na forma de direito.
Argui-se que, em as considerando o Tribunal de Contas irregulares, essa questão não poderia ser reaberta pela Justiça Comum, a quem caberia o processamento e julgamento do crime, consequência do alcance verificado. Portanto, caracterizado pelo Tribunal de Contas o alcance, na ação de peculato, esse pronunciamento obrigaria a Justiça Criminal Comum. Então, esta, quer dizer, a Justiça Comum, terá de aceitar dito pronunciamento sobre as contas do réu, como apuração de fato necessária à integração do delito, isto é, como apuração preestabelecida e requisito da ação, sob pena de um novo Juiz rejulgar o que tinha sido julgado por outro, incorrendo em injustificável bis in idem, em inútil nova apreciação, que resultaria em mero formalismo. Igual consideração se faz quanto à Justiça Comum, em ação executiva proposta pelo Estado, para cobrança de alcance e haver a correspectiva reposição patrimonial.
Não se trata de rejulgamento pela Justiça Comum, porque o Tribunal de Contas é órgão administrativo e não judicante, e sua denominação de Tribunal e a expressão julgar ambas são equívocas. Na verdade, é um Conselho de Contas e não as julga, sentenciando a respeito delas, mas apura da veracidade delas para dar quitação ao interessado, em tendo-as como bem prestadas, ou promover a condenação criminal e civil do responsável verificando o alcance. Apura fatos. Ora, apurar fatos não é julgar.
Julgar é dizer do direito de alguém em face dos fatos e relações jurídicas, tendo em vista a ordem normativa vigente. Se simplesmente apura fatos, sob a imprópria cognominação de julgar, não exerce função jurisdicional. E essa apuração poderá ser objeto de prova contrária em Juízo. Não deve constituir por isso prejudicial a ser aceita pelo Poder Judiciário sem qualquer exame. A Justiça Comum não pode ficar presa a ela, uma vez a Constituição não atribui expressamente a força de sentença as conclusões do Tribunal de Contas sobre o fato. E a quem cabe dizer do direito de alguém, em princípio, cabe a verificação do fato, em última análise. Logo, a Justiça Comum, ao dizer daquele, deve poder apreciar este. Inexiste bis in idem, porquanto uma coisa é a apreciação administrativa e outra a judicial de dado fato.
Sem dúvida, a apuração do fato do alcance pelo Tribunal de Contas será uma prejudicial necessária para a propositura da ação, civil ou penal, como pressuposição do ilícito civil ou penal. Essa apuração prévia sempre se faz necessária. E, em princípio, será aceita pelo Poder Judiciário, seja no executivo fiscal para reposição patrimonial, ou na ação criminal contra o agente público. Isso porque documentalmente comprovada no procedimento levado a efeito pelo Tribunal de Contas. Contudo, se o agente público, réu em uma dessas ações, arguir cerceamento da defesa nessa apuração e trouxer para os autos provas convincentes da improcedência da apuração de ilícito civil ou penal contra ele, não pode o Poder Judiciário, que vai condená-lo, e, em seguida, executar a sua sentença, deixar de examinar essa alegação e verificar da sua procedência, se no bojo dos autos constarem elementos para admitir-se a veracidade do alegado contra o pronunciamento do Tribunal de Contas.
Se os constituintes tivessem atribuído ao Tribunal de Contas função jurisdicional, deveriam tê-lo integrado no Poder Judiciário. Isso não fizeram, e, ao contrário, o colocaram entre os órgãos de cooperação nas atividades governamentais, como auxiliar do Poder Legislativo.
Por outro lado, a Constituição de 91 havia abolido o contencioso administrativo. Por conseguinte o seu restabelecimento só se poderá admiti-lo, mesmo parcial, para julgamento das contas, dos responsáveis por dinheiros e bens públicos, quando tal viesse dito no texto de modo indiscutível, o que se conseguiria declarando-se que a decisão do Tribunal de Contas nessa matéria teria força de sentença.
Poder-se-á contra-argumentar que se dera o título de Ministro aos seus membros, e a sua nomeação se faz nos moldes das dos demais Ministros da Corte Suprema e gozam das mesmas garantias destes, de vitaliciedade, de irremovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, bem como quanto à organização do Regimento Interno e da Secretaria, tem o Tribunal de Contas as mesmas atribuições dos Tribunais Judiciários.
Ora, o argumento prova demais. Isso se fez para assegurar a independência dos seus membros perante o Executivo no fiscalizar a sua gestão financeira, jamais para julgar das suas contas com força de sentença, de modo a obrigar, por exemplo, o Poder Judiciário a considerar como caracterizado o alcance de alguém, sem poder reapreciar essa apuração, e dever, portanto, aceitar como definitivo o julgamento do Tribunal de Contas. Não parece razoável obrigar o juiz criminal ou civil, reduzido a uma função formal a condenar alguém por provas que não o convencem ou não puder verificar de sua procedência, quando nos autos há elementos que as contestam.
As leis ordinárias, que, na vigência da Constituição de 91, embora devendo ser havidas como inconstitucionais, quiseram atribuir ao Tribunal de Contas competência jurisdicional, o fizeram de forma expressa. Deram às suas decisões força de sentença. Isso não fizeram os textos constitucionais. Portanto, os textos em causa, constitucionais, devem ser interpretados como tendo em mira usar a palavra julgar no sentido restrito, atrás sustentado, isto é, dentro da órbita administrativa, pois do contrário atribuiriam a esse julgamento a força de sentença.
Aliás, não se compreende que se interprete a expressão “julgar da legalidade” como restrita à órbita administrativa e “julgar as contas” se estenda ao âmbito jurisdicional. A alteração de regência do verbo não muda o sentido da função, passando-a de administrativa para jurisdicional, e, ao contrário, a regência direta não é a própria para o emprego da palavra no sentido de sentenciar, como se viu. Ambos os textos devem ser entendidos em sentido estrito, embora ao “julgar da legalidade” haja apreciação de matéria de direito, porém sem caráter definitivo, mero exame administrativo, relegada ao Judiciário a função jurisdicional.
Demais, dita interpretação amolda-se à natureza do Tribunal de Contas, Tribunal Administrativo, de verificação de contas, e jamais Tribunal de Justiça, de julgamento afinal dos agentes públicos pelas contas não prestadas ou malprestadas.
Aliás, não se confunde o julgar das contas com o julgamento dos responsáveis por elas.
A função de julgar, no seu verdadeiro sentido, de dizer do direito em face dos fatos, diz respeito a alguém, ou melhor, a uma pessoa de direito, natural ou jurídica. No caso, o agente público que ordenou ou fez a despesa, natural, relativa ao alcance, de natureza penal, e a reparação patrimonial, de natureza civil, ou melhor, o responsável pelas contas.
Já a expressão “julgar as contas” não contém qualquer função jurisdicional de dizer do direito de alguém, mas administrativo-contábil de apreciação do fato da sua prestação. Julgamento se faz dos agentes responsáveis pelas contas, jamais das contas. Estas se apreciam, como se disse, sob o aspecto administrativo-contábil. São insuscetíveis de julgamento.
O Tribunal de Contas julga as contas, ou melhor, aprecia a sua prestação em face de elemento administrativo-contábil, e, outrossim, a legalidade dos contratos feitos, bem como das aposentadorias e pensões. A Justiça Comum julga os agentes públicos ordenadores de despesas e dos seus pagadores. E ao julgar os atos destes, sob o aspecto do ilícito penal ou civil, há de apreciar, também, os fatos que se pretendam geraram esses ilícitos. Repita-se, a função jurisdicional é de dizer o direito em face dos fatos. Jamais de apreciar fatos simplesmente. Mesmo se aceitasse como definitiva essa apreciação, não corresponderia a uma função de julgar.
A certidão do Tribunal de Contas em afirmando o alcance do agente público, como documento de instrução do processo judicial tem tão-somente a presunção de verdade juris tantum, ante o texto constitucional e não juris et juri. Isso porque não possui força de sentença judicial e isso não pode ter, a menos que lhe fosse atribuída a competência de julgar o próprio ilícito civil e penal, atribuído aos agentes ordenadores da despesa e seus pagadores, isto é, os agentes responsáveis pelas contas.
As sucessivas Constituições pátrias, expressamente, conferiram aos Juízes da União (cf. 1934, art. 81, “a”, e parágrafo único; 1937, arts. 107, 108 e parágrafo único; 1946, art. 201 e §§1.º e 2.º; 1967, art. 119, I, e 1969, art. 125, I) competência para processar e julgar as causas em que a União for interessada como autora ou ré, assistente ou opoente, e só excepcionaram dessa competência a competência da Justiça local nos processos de falência e outros em que a Fazenda Nacional, embora interessada, não intervenha como autora, ré, assistente ou opoente, e ressalvaram, ainda, a competência da Justiça Eleitoral, Militar e do Trabalho. Nada disseram quanto às contas dos responsáveis por dinheiro ou bem público.
Ao contrário, as Constituições de 34 (art. 81, “i”), de 46 (art. 104, II, “a”, art. 105, depois de promulgado o AI/2, art. 6º), de 67 (art. 119, I e IV), e 69 (art. 125, I e IV), sem qualquer ressalva em favor do Tribunal de Contas, atribuíram aos Juízes Federais competência para processar e julgar, em 1.ª instância, os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de entidades autárquicas ou empresas públicas, ressalvadas tão-somente a competência da Justiça Militar, do Trabalho e Eleitoral.
Se pretendessem excluir da competência dos Juízes Federais o julgamento dos responsáveis por dinheiro ou bens públicos, dando força de sentença à decisão do Tribunal de Contas a respeito das suas contas, deveria ter isso dito, ou, ao menos, feito remissão a esse artigo. Ao contrário, silenciaram. Não tendo excluído essa matéria da competência dos Juízes federais, ela lhes deve caber, ex vi dos artigos das diferentes Constituições pátrias, e não só a competência formal de condenar os cujas contas forem rejeitadas e havidas como tendo cometido delito, ou civilmente responsáveis, como apreciar o mérito desse ilícito penal e civil, que lhe fosse imputado.
E essa competência, ora foi conferida em grau de recurso, ao Supremo Tribunal Federal (Constituição de 34, art. 76, II, “a”, c/c art. 79, parágrafo único, §1.º, 101, II, 2.ª letra “a” e art. 109 (parágrafo único); ora, aos Tribunais Federais para julgar privativa e definitivamente (Constituição de 1946, art. 104, II “a”; 67; art. 117, II, e parágrafo único; 69, art. 122, II, e parágrafo único), exceto as questões de falência, e as sujeitas à Justiça Eleitoral, à Militar e à do Trabalho. E nenhum Tribunal julga privativa e definitivamente uma questão se não puder apreciá-la, tanto no seu aspecto formal como material.
Observe-se, considera-se como crime de responsabilidade dos Ministros de Estado não só os que praticarem ou ordenarem, como, ainda, os relativos a despesas do seu Ministério, a que lhes incumbe dirigir, como orientador, coordenador e supervisor dos seus órgãos, pois respondem por elas e o da Fazenda, além desses, como os pertinentes à arrecadação da receita, por lhe estar afeto ainda esse encargo.
Portanto, como se poderá entender que a expressão constitucional “julgará as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos” equivale à outorga de função jurisdicional ao Tribunal de Contas? A que fica a mesma função entregue à Justiça Política e depois à Justiça Comum, nos casos de crimes de responsabilidade do Presidente da República e conexos dos Ministros de Estado, e à Corte Suprema, nos de responsabilidade dos Ministros, os quais respondem não só pelos atos que ordenarem ou praticarem, como pelas despesas do seu Ministério, e, o da Fazenda, além disso, pela arrecadação da receita? E como se processaria a responsabilidade posterior dessas autoridades, civil e criminal, perante a Justiça Comum, ao depois de condenados pela perda do cargo?
Ora, nem uma palavra existe sobre o Tribunal de Contas. Considerado por este ato do Presidente da República e dos Ministros de Estado a ela conexos como tendo atentado contra a probidade administrativa ou a execução do orçamento, ficará o Tribunal Político preso aos pronunciamentos do Tribunal de Contas? Então, o órgão auxiliar do Congresso, de Fiscalização financeira e orçamentária, se sobreporá, nas suas conclusões, a ele? Não terá a Câmara dos Deputados a liberdade de apreciar da existência ou não do apontado atentado à probidade administrativa por parte do Presidente para apresentar a denúncia contra ele, e o Senado ficará obrigado a aceitar como provado esse atentado, objeto de denúncia, sem apurar a veracidade, formando por si próprio o Juízo a respeito?
Consequência última a se tirar é a anteriormente preconizada, qual seja, a de que a expressão “julgar” as contas conferida ao Tribunal de Contas, aliás impropriamente, se restringe à órbita administrativa, com o objetivo de poder dar quitação ou mandar apurar a responsabilidade das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos. E, ainda, com esse mesmo sentido é dado à palavra julgar, como correspondendo a apreciar as contas tão-somente se encontra quando se atribui nas Constituições de 1934 (art. 40, “c”), 1946 (art. 65, VIII), 1967 (art. 47, VIII) e 1969 (art. 44, VIII) ao Congresso Nacional competência privativa para julgar as contas do Presidente da República. Isso porque o Presidente da República deverá apresentar ao Congresso Nacional dentro de 60 dias as suas contas relativas ao ano anterior, após a abertura da Assembleia Legislativa, ex vi do art. 81, XX, com parecer prévio do Tribunal de Contas, em 60 dias do seu recebimento.
Como consideração última, pondere-se que em face das Constituições pátrias, desde a de 1946, sempre se assegurou, entre os direitos individuais dos cidadãos, e entre eles estão os agentes públicos, ordenadores de despesas e seus pagadores, que não poderia ficar excluída do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual, o que lhe seria assegurado por lei. Ora, em entendendo o agente público, cujas contas deixaram de ser aceitas pelo Tribunal de Contas, que com isso se acarretou lesão ao seu direito de defesa e de que a comprovação de fato arguido não é verdadeira, há de permitir-se ao Judiciário, sempre, o seu exame, sob pena de lesão desse direito individual deles, seja na arguição de ilícito civil ou criminal.
Portanto, o Tribunal de Contas não exerce função jurisdicional e tão-somente administrativa de tomada de contas. Tal ponto de vista é igualmente defendido por Guimarães Menegale (cf. Direito Administrativo e Ciência da Administração, pp. 219-226, Borsói, Rio, 1957) e por José Afonso da Silva (cf. Do Recurso Extraordinário no Direito Processual Brasileiro, pp. 265-268, Livro 114, Ed. RT, 1963). Clenício da Silva Duarte (cf. Anais do VIII Congresso de Tribunais de Contas do Brasil, vol. II, pp. 441-477, João Pessoa, 1976).
Em conclusão
I – A função por excelência do Tribunal de Contas é o controle do orçamento, a fim de assegurar a moralidade pública.
II – Os Tribunais de Contas não exercem, na verdade, função jurisdicional, mas de apreciação de contas apenas, cuja atividade a respeito é de especial relevo.
III – O Tribunal de Contas na Constituição de 67 e Carta de 69 teve os seus reais poderes restringidos e assim prejudicado o exercício da sua precípua função.
IV – Só o veto absoluto contra despesas sem verba ou verba imprópria permite o efetivo controle do orçamento, reservado o veto relativo para outras despesas e o controle a posteriori para a apuração final de responsabilidades dos seus ordenadores e pagadores.
V – Os tribunais de Contas dos Estados e Municípios podem adotar, em face dos arts. 13 e 15 da Carta de 69 c/c o art. 1.º, o veto absoluto e relativo e o controle a posteriori nos termos acima enunciados, para garantia do cumprimento do cumprimento do orçamento.
VI – Os Estados, nos Municípios em que inexiste Tribunal de Contas, podem exercer o controle dos orçamentos municipais, através dos seus Tribunais de Contas ou de órgão criado para esse fim.