Sundfeld, Carlos Ari. "Discricionariedade e revogação do ato administrativo." RDAI | Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura 2, no. 6 (September 30, 2018): 379–90. http://dx.doi.org/10.48143/rdai/06.cas.
Abstract:
1 Revogação dos atos administrativo: ideia geral
Se a discricionariedade é o tema, em direito administrativo, mais inçado de dificuldades e de deslinde mais importante para a construção de um sistema afinado com o Estado de Direito, dentro dele a revogação é o ponto culminante, seja pela delicadeza dos problemas que propõe, seja pela repercussão prática deles no universo jurídico dos administrados.1
Reconhece-se o poder de a Administração Pública extinguir as relações jurídicas nascidas dos atos concretos que anteriormente tenha produzido, ou suprimir os atos abstratos, com eficácia ex nunc, para atender o interesse público, efetuando, para determiná-lo, uma apreciação discricionária.
O poder de revogar2 deflui – salvo autorização expressa da lei para a retirada – da própria regra de competência que autoriza a emanação do ato, desde que referida competência se mantenha, é dizer, não se esgote com a anterior prática do ato. Daí não poderem ser revogados, dado o exaurimento da competência, dada a indisponibilidade posterior da autoridade sobre os efeitos do ato que praticou: os atos de controle, os atos cujos efeitos derivam exclusivamente da lei (meros atos administrativos), os atos cujos efeitos já se tenham esgotado, os atos integrantes de procedimento, os atos complexos, os atos que gerem direitos adquiridos e os atos praticados no exercício de competência vinculada.
Quanto a estes últimos, compreende-se a impossibilidade de revogar. Se um ato é vinculado, vale dizer, se a autoridade, ao praticá-lo, nada mais fez que constatar a ocorrência dos pressupostos descritos com precisão pela lei e autorizadores de sua produção, esgotou-se ali sua competência. Pois se a lei fornece, com exatidão, todos os critérios a serem levados em conta, se descreve perfeitamente os requisitos e finalidades do ato, é porque com antecedência podia prever que, uma vez presentes estes, o interesse público seria atendido se praticado o ato. Logo, se ele viesse a ser extinto posteriormente (e não por uma causa natural), a partir de então o interesse público estaria desatendido, eis que, por definição, este só seria alcançado com o ato. Daí que, nos atos vinculados, não conserva a autoridade a competência para continuar provendo na matéria: seu poder é sempre ligado ao interesse público; atingido este, se esgota. Caso contrário, possuiria, por absurdo, uma competência cujo único exercício possível se daria contra o interesse público, por atacar ato que o ordenamento antecipadamente definiu como o único apto a atender aquele interesse.
Só existe, portanto, possibilidade de revogar com referência a atos emanados no exercício de competência discricionária.
A questão que se põe, a partir daqui, é saber se qualquer ato produzido após apreciação discricionária – e que não esteja incluído entre aqueles cuja revogação já se disse impossível – é suscetível de revogação. Em uma palavra: se a discricionariedade originária na disponibilidade do ato pela Administração, ou se esta disponibilidade tem algum outro condicionamento.
2 Discricionariedade: liberdade administrativa?
Para estabelecer premissas corretas à análise da questão, é preciso compreender qual o significado da discricionariedade administrativa.
Costuma-se entender discricionariedade a discricionariedade como uma liberdade que a Administração possui de escolher o momento, a forma, o motivo, o objeto, enfim, a conveniência e oportunidade de seus atos, naquelas hipóteses em que a lei não os estabeleça com exatidão.
Parece, desta formulação, que a discricionariedade seria como que um persistente resquício do Estado Polícia. De fato, neste, a Administração era livre, no sentido de que não via seu comportamento condicionado, sequer limitado, pela lei.
Mas não se pode confundir a “liberdade” que possa existir para a Administração Pública no Estado de Direito com aquela que desfrutava antes dele. 3 O Estado de Direito, com a adoção da tripartição de funções e do postulado da supremacia da lei, criou uma sujeição jurídica para o administrador: o princípio da legalidade, pelo qual ele só pode agir se houver lei autorizadora e deve fazê-lo nos estreitos limites da autorização. Se acaso resulta, ainda, em Estado de Direito, alguma “liberdade” para a Administração, há de ser certamente algo bem diverso daquela existente no Estado Polícia. Antes, liberdade por falta de lei, agora “liberdade” por força da lei.
Ressalta-se devidamente que, se “liberdade” ainda há, não se trata de liberdade apesar da lei – em outros termos: resultante de um espaço não normado, no atingido pela lei – mas “liberdade” por força da lei, isto é, liberdade que a lei, por alguma razão, concede à Administração. E nem poderia ser diferente, eis que, se ao administrador só se reconhecem aqueles poderes expressamente outorgados por lei, a ausência dela não pode significar outorga de poderes, mas antes negação deles.
Contudo, não se há de falar em “liberdade” administrativa. Esta expressão é totalmente inconveniente para explicar a discricionariedade, isto é, para designar o poder que a Administração pode ter de, no caso concreto, apreciar subjetivamente se estão presentes os pressupostos fixados pela lei como autorizadores da emanação do ato. Liberdade é mais propriamente, uma faculdade de agir limitada apenas negativamente, um poder de ação jurídica reconhecido aos sujeitos privados, que estes exercem no seu próprio interesse. A liberdade, juridicamente, pode ser entendida como um poder que resulta da ausência de proibições. É a ideia essencial do direito privado.
3 Requisitos do ato no Direito Privado: defesa da liberdade do sujeito
Por que o Direito Privado gira em torno da liberdade, é que a lei só estabelece requisitos intrínsecos para a validade dos atos privados.4 A capacidade, a forma, são pressupostos cuja presença se exige para garantir que o ato seja sempre expressão fiel da vontade do sujeito. Em outros termos, existem para assegurara a liberdade efetiva. Já no Direito Público, a lei estabelece extrínsecos para a validade do ato, voltados a tutelar, não a vontade do agente, mas uma vontade superior, a da própria lei.
Percebe-se a diferença: no Direito Público, o agente é mero intermediário entre a lei e o ato, necessário apenas para que uma vontade abstrata (a da lei) se concretize (no ato); daí que a lei fixe requisitos para garantir – contra o próprio agente – que o ato seja espelho fiel da vontade legislativa. No Direito Privado, é a lei que se põe como intermediário entre o sujeito e seu ato, necessária apenas para que a vontade concreta (do sujeito) se transfira para o ato; daí que a lei fixe requisitos para garantir – a favor do próprio sujeito – que o ato seja espelho fiel da vontade individual.
Então, confira-se. O Código Civil (LGL\2002\400) arrola como fatores de nulidade ou anulabilidade do ato jurídico (arts. 145 e 147):
a ilicitude do objeto (porque o sujeito haveria desbordado de seu campo de liberdade, para atuar em zona proibida);
a ocorrência de vícios sociais, como a simulação e a fraude (em que o sujeito pretendeu violar a lei e os direitos de terceiros, atuando, assim contra proibição de lei);
a incapacidade do sujeito (porque o incapaz ou não tem aptidão para formar sua vontade, ou não tem para exprimi-la);
a ocorrência de vícios da vontade, como a coação, o erro, o dolo (onde a vontade não foi livre, mas viciada por elemento externo indesejado);
a preterição de forma ou solenidades previstas em lei (pelos prejuízos que traz à adequada formação ou expressão da vontade ou à prova posterior dela).
Os requisitos do chamado ato jurídico, que nada mais é que o ato de Direito Privado, ou se destinam a impedir que o sujeito fira a lei, ultrapasse seu campo de liberdade, ou a garantir o pleno exercício da liberdade. Não há requisitos quanto ao conteúdo ou a finalidade: estes o sujeito escolhe, justamente porque é livre.
4 Requisitos do ato no Direito Administrativo: defesa da vontade da lei
No Direito Administrativo, os requisitos de validade do ato são sempre voltados à garantia da efetiva realização de um vontade e finalidade exteriores do sujeito. O ordenamento estipula o conteúdo, a finalidade, os motivos do ato, e ao agente cabe a transposição desses requisitos, abstratamente previstos, para o mundo concreto.
Se todo poder emana do povo (CF (LGL\1988\3), art. 1º, § 1º), segue-se que é ele quem tem a liberdade para a escolha das finalidades do agir estatal. E esta escolha, feita indiretamente através dos representantes legislativos, se consubstancia na lei. É a lei o fruto do exercício da liberdade. Não o ato administrativo.
E nem seria possível explicar a discricionariedade justamente como uma delegação, feita pela lei ao administrador, daquela liberdade que o povo exerce através do legislador. São indelegáveis as funções entre os poderes legislativo, executivo e judiciário (CF (LGL\1988\3), art. 6º, parágrafo único).
Daí inexistir liberdade para o administrador, mesmo que, por imprecisão da lei, lhe caiba determinar no caso concreto, no uso de critérios subjetivos próprios, qual seria a vontade da lei se ela tivesse defrontado com aquele específico caso. E não há liberdade porque a atuação da vontade do agente será meramente instrumental para a realização da vontade da lei. A vontade do agente não é um valor em si mesmo, como no Direito Privado, mas um necessário instrumento para a realização da vontade da lei.
A exigência de discricionariedade, em suma, não importa em liberdade, em poder de ação do agente limitado apenas negativamente, mas ainda em função, em dever-poder de ação condicionado positivamente por interesses públicos, exatamente como se passa na vinculação. Haja discricionariedade ou vinculação, a atividade do administrador será sempre uma “atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais”, nas preciosas palavras de Queiró.5 Do fato de que, ao realizar a subsunção, o agente pode ser obrigado a fazer uma apreciação volitiva para determinar concretamente qual seria a vontade da lei, não deflui, para ele, qualquer poder ligado à liberdade, mas apenas e tão-somente isto: dever de realizar uma apreciação subjetiva necessária à aplicação de uma norma jurídica.
5 Procedimento para a determinação da vontade da lei
Por outro lado, a existência de indeterminação na redação de uma específica norma legal não leva necessariamente à existência concreta daquele dever de realizar uma apreciação subjetiva para sua aplicação.
Em primeiro lugar, o agente interpreta a norma em confronto com todo o ordenamento jurídico e, ao final deste trabalho, encontrará uma formulação da norma muito mais precisa que aquela resultante das eventuais imperfeições legislativas. Assim, uma norma que não esclareça expressamente sua finalidade, deverá ser interpretada em harmonia com todo o ordenamento, com o que logrará, senão a identificação da finalidade exata, ao menos a listagem daquilo que a finalidade não pode ser. Por exemplo: não pode ser privada (já que a Administração Pública só pode buscar satisfazer interesses públicos), não pode voltar-se exclusivamente a interesses secundários da própria Administração (visto que esta deve perseguir os interesses públicos primários), não pode ser contrária à boa-fé, não pode violar a igualdade, não pode amesquinhar direitos adquiridos, e assim diante. Tais determinações são obtidas ao cabo da interpretação de outras normas, também jurídicas, como a Constituição, as leis gerais, os regulamentos, etc. E o trabalho interpretativo, ocioso dizê-lo, é controlável pelo Poder Judiciário.
Ainda assim, pode restar alguma indeterminação na norma. Do que ainda não resulta a possibilidade de o agente passar à apreciação subjetiva. Antes, deve avaliar a situação concreta em confronto com a norma, para saber se, deste confronto, já não surge uma única solução como a possível. A propósito, Celso Antônio Bandeira de Mello acentua com razão que a “diferença entre os casos de vinculação e discrição reside em que, na vinculação, o comportamento que levará à plena satisfação da finalidade legal está predefinido e na discrição sua definição é posterior, já que vai depender das situações, pois não foi estabelecido em abstrato”.6 Em virtude disto, “o quadro de circunstâncias fáticas em vista do qual a Administração terá de agir, promove um balizamento suplementar da discrição abstratamente conferida pela norma, estreitando-a – tal como é desejado pela lei – até o ponto de compor os limites da boa administração”, sendo que “este estreitamento pode, em certas circunstâncias concretas, chegar ao ponto de elidir, ante o caso específico, a liberdade que, in abstracto, fora suposta na lei”.7
6 Conceito de discricionariedade
Pois bem. Se do confronto do fato com a norma, não decorrer a vinculação total, restando ainda alguma indeterminação (já menos acentuada, em concreto, do que quando apreciada apenas a norma abstratamente), aí sim, o agente fará aquilo que viemos chamando de apreciação subjetiva, para contrapô-la à apreciação objetiva. A apreciação objetiva, sem embargo de que feita por um sujeito, é um exercício lógico de estabelecimento de relações da norma com outras normas (interpretação) ou da norma com a situação fática, e que pode ser controlada por outras pessoas – pelo Judiciário, por exemplo –, justamente por se tratar de um relacionamento de objetos (normas, fatos), situados fora dos sujeitos, portanto, visíveis e valoráveis por todos os sujeitos. A apreciação subjetiva, só admissível quando nenhuma apreciação objetiva é mais possível, situa-se dentro de “um limite além do qual nunca terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só eles estejam na verdade, e que outros tenham uma opinião falsa”.8
Postas estas considerações, afastadas as ideias de que a discricionariedade seja sinônimo de liberdade e de que resulte sempre e necessariamente da simples existência de indeterminação de uma norma, podermos conceitua-la como o dever-poder de o administrador, após um trabalho de interpretação e de confronto da norma com os fatos, e restando ainda alguma indeterminação quanto à hipótese legal, fazer uma apreciação subjetiva para estabelecer qual é, no caso concreto, a decisão que melhor atender à vontade da lei.
7 Impossibilidade de revogar sem fato novo
Cabe perguntar, agora, se um ato cuja emanação demandou uma apreciação subjetiva pode ser revogado, em momento posterior, por o agente considerar que, embora a decisão tenha se mantido dentro das condições abstratas da lei, isto é, embora a apreciação objetiva tenha sido absolutamente regular, aquela apreciação subjetiva não foi a melhor, não atendeu da forma mais adequada ao interesse público.
Entenda-se que não se trata aqui de vício de legalidade, que haveria se fosse possível demonstrar objetivamente que o ato não era o mais adequado ao interesse público. Pergunta-se se é aquela decisão anterior que foi validade pelo Direito por ter o agente cifrado a apreciação discricionária a seus justos limites, pode ser desfeita depois, sob fundamento de que, originariamente, não era a correta.
A resposta é negativa, porque, sendo o ato válido, ele se torna irretratável, desde que mantidas todas as condições que o produziram. Para compreender isto, é necessário perceber que a competência que um agente dispõe em concreto (vale dizer, para decidir da aplicabilidade ou não da norma em uma específica situação), se exaure com seu exercício. Daí por diante, o agente não possui mais a disponibilidade daquela específica, competência: ou a exerceu bem – e o ato é válido e irretratável enquanto mantida aquela situação que o gerou –, ou a exerceu mal – e o ato é inválido, devendo ser anulado.
É compreensível que assim seja pois “se o agente, ao editar o ato inicial, fez uma opção exercendo competência discricionária, produziu aquele que era, à época, o interesse que a lei acobertava como sendo o interesse público. É dizer: quem editou legitimamente o ato era o titular da dicção do interesse público. No preciso momento em que foi editado o ato não havia outro interesse qualificável como interesse público, senão aquele decidido pelo ato”.9 Se assim entendermos, havermos de concluir que, uma vez exercida a concreta competência, o sujeito não preserva a disponibilidade dela. Admitir-se o oposto, seria conceber a existência de um poder cujo único exercício possível se daria contra o interesse público, por atacar ato que o ordenamento anteriormente acolheu como apto a realizá-lo. Não se pode, com efeito, supor que o Direito preservasse ao agente o poder para corrigir algo que o próprio Direito definiu correto. Segue que a decisão tomada pela autoridade no exercício de apreciação discricionária e que se atenha a seus justos limites é recebida pelo Direito como a solução que melhor atende concretamente à vontade da lei. Por isso é irretratável, enquanto mantida a situação fática que a criou.
Este é o entendimento que, além de lógico, melhor se coaduna com o princípio da segurança e estabilidade das relações jurídicas. Pois, a se permitir que o agente mantenha a competência para prover em matéria e em situação já providas, haveríamos de aceitar como possível que, em dias subsequentes, este entendesse conveniente um ato, depois inconveniente, em seguida conveniente, e inconveniente... de modo que se pudesse para sempre praticar e revogar sucessivamente um mesmo ato, sem que nada, absolutamente nada, se houvesse alterado naquela situação fática a que o ato responde. Seria supor que o agente pudesse desquerer o que quis, ideia tão justamente rejeitada por Alessi.
Contudo, se é verdade que a competência concreta (isto é, a competência prevista na norma e qualificada por uma específica situação fática) se exaure uma vez exercida, isto não implica em que a competência de prover abstratamente considerada, também se esgote. Se isso ocorresse, ato algum seria revogável. A competência em abstrato permanece e, ante a modificação na situação fática anterior, pode fazer nascer uma nova competência concreta, que deflui da mesma regra de direito que gerou a anterior (a usada para a produção do ato), mas que é diversa, porque os fatos são diversos. E a competência concreta, já se disse, é aquela qualificada pelos fatos.
Resulta disso uma transcendental consequência prática: a de que é impossível à Administração revogar um ato se não ocorrerem fatos supervenientes que justifiquem a revogação. É este, aliás, o entendimento do Conselho de Estado francês que, conforme nos relata Marcel Waline,10 fulminou, por ausência de motivo, a agravação de uma decisão anterior, imposta sem que ocorresse fato novo. O mesmo se dá se os motivos alegados pelo agente para retirar uma autorização já eram conhecidos quando concedida esta. Relata o autor que determinada associação solicitara e obtivera autorização para promover missa campal em um jardim público e que, dias após, a autoridade revogou-a, a pretexto de que a multidão que compareceria ao evento poderia provocar a degradação do local. O Conselho de Estado anulou o ato revocatório pois, entre o momento em que a autorização foi dada e aquele e que retirada, não ocorrera fato novo algum de molde a justificar legalmente a segunda decisão.
A correção do arresto é irrefutável. Não é possível que duas decisões, partindo do mesmo fato e sendo opostas, alcancem o mesmo objetivo. Se o ato administrativo for válido, haverá atingido a finalidade pública. A revogação, que dispõe em contrário ao ato, não pode atender à mesma finalidade, se a situação fática não houver mudado. Logo, a revogação no caso atentará contra o interesse público.
Conclui-se então que, se o ato emanado no uso da competência discricionária for reconhecido como válido, só poderá ser revogado ante uma alteração no mundo dos fatos.
Para que se justifique a nova decisão, não basta o mero transcurso do tempo. Uma situação não se modifica pela simples passagem do tempo: “tempo, só por só, é elemento neutro, condição do pensamento humano e, por sua neutralidade absoluta, a dizer, por que em nada diferencia os seres ou situações, jamais pode ser tomado como o fator em que se assenta algum tratamento jurídico desconforme”.11 O tempo pode levar a uma mudança na situação fática, pelos eventos que nele se venham a alojar, mas nem sempre isto ocorre. Igualmente, não é qualquer fato que atinge a situação fática, mas só aquele que guarde com esta alguma conexão lógica.
8 Necessidade de fundamentação dos atos administrativos
Com isto, aliás, fica uma vez mais saliente a absoluta necessidade que os atos administrativos sejam fundamentados, é dizer, de que, além de só serem praticados quando ocorrerem os fatos previstos em lei, além de obedecerem aos pressupostos de validade usualmente reconhecidos, como o motivo e a finalidade, contenham a exposição expressa, feita pela autoridade, das razoes que levaram à produção do ato. Necessidade que feita pela autoridade, das razões que levaram à produção do ato. Necessidade que doutrina e jurisprudência frequentemente reconhecem para os atos revocatórios, não, porém, para os demais. Ora, como se poderá saber, em situações complexas, se um fato foi ou não considerado pelo agente quando da emanação do ato que se quer revogar? Como se poderá saber se um novo fato altera ou não a específica situação fática considerada anteriormente, se mantém com ela alguma conexão lógica, se a autoridade não revelou, na ocasião, em sua inteireza, qual a situação em vista da qual produzia o ato?
Em trabalho anterior12, acentuamos a importância da fundamentação para o controle externo do at. Agora, podemos afirmar sua significação para o próprio desenvolvimento normal da administração ativa: se as funções públicas são impessoais, no sentido de que podem e são ocupadas por pessoas físicas diversas, frequentemente alteradas, que segurança haverá para um novo agente de que, ao revogar um ato, não estará praticando uma ilegalidade, se ele não pode conhecer com exatidão os fatos já sopesados anteriormente? Apenas os atos motivados podem oferecer tal garantia, na medida em que a fundamentação capta e preserva para o futuro uma situação fática cujos contornos são perfeitamente conhecidos do agente atual, mas não o serão do agente futuro.
9 Invalidade
Por fim, é de se ver que, uma vez delimitado o campo da revogação do modo exposto, será mister uma revisão e alargamento do instituto da invalidação. Se o agente percebe, após haver emanado o ato, que não adotou a solução que seria a melhor – embora abrigada na discrição abstratamente prevista na norma – e se isto é demonstrável, o ato é inválido. Inválido por contrariar a norma, que só admite que o agente adote a solução que seja a mais adequada à finalidade pública. Inválido por não estar justificado por “um interesse público em concreto suficiente a justificá-lo, com base nos critérios normais de oportunidade e conveniência”. Inválido por lhe faltar uma “aderência perfeita, precisa, capilar à norma”13.
Realmente, se a discricionariedade, como se viu, não importa em liberdade para o aplicador da lei, mas em dever de procurar a melhor solução para os casos concretos – solução querida pela norma, mas impossível de ser prefixada por ela – toda vez que se puder demonstrar objetivamente que a decisão não foi a melhor, o ato será inválido, por contrariedade à lei.
10 Síntese
Ante o exposto, concluímos, articuladamente:
a) A liberdade, entendida como faculdade de ação limitada apenas negativamente, só é reconhecida aos sujeitos privados, que a exercem no seu próprio interesse.
b) No Direito Público, o agente é mero intermediário entre a lei e o ato, necessário apenas a que a vontade da lei se concretize. A vontade do agente é meramente instrumental. Por isto, a lei fixa requisitos para garantir, contra o próprio agente, que o ato seja espelho fiel da vontade legislativa.
c) No Direito Privado, é a lei que se põe como intermediária entre o sujeito e seu ato, necessária apenas a que a vontade do sujeito se transfira para o ato. A vontade do sujeito privado, expressão de sua liberdade, é um valor em si mesma. Por isto, a lei fixa requisitos para garantir, a favor do próprio sujeito, que o ato seja espelho fiel de sua vontade.
d) Por tais motivos, discricionariedade não é sinônimo de liberdade administrativa, mas sim de dever-poder de o administrador, após o trabalho de interpretação da norma e de confronto desta com os fatos, e restando ainda alguma indeterminação quanto à hipótese legal, fazer uma apreciação subjetiva para estabelecer qual é, no caso concreto, a decisão que melhor atende à vontade da lei.
e) A decisão tomada pelo agente no exercício de apreciação discricionária e que se atenha a seus justos limites, é recebida pelo Direito como a decisão que melhor atende concretamente à vontade da lei. Por isto, é irretratável, enquanto mantida a situação fática que gerou o ato.
f) Resulta que é impossível à Administração revogar um ato se não ocorrerem fatos supervenientes que justifiquem a revogação.