Mello, Celso Antônio Bandeira de. "Responsabilidade do funcionário por ação direta do lesado." Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura - RDAI 4, no. 13 (May 30, 2020): 415–24. http://dx.doi.org/10.48143/rdai.13.cab.mello.
Abstract:
Todo sujeito de direito capaz é responsável pelos próprios atos. Assim, aquele que desatende as obrigações que contraiu ou os deveres a que estava legalmente adstrito sofrerá a consequente responsabilização. O Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, em seu ·art. 159, substancia este preceito, que não é apenas uma regra de direito Civil, mas de teoria geral do Direito, inobstante encartado em diploma normativo concernente, mais que tudo, às relações privadas. Reza o preceptivo em causa: “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica brigado a reparar o dano”. Outrossim, o art. 1.518 do mesmo Código estatui: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação”. Tal regramento exprime, do mesmo modo, um cânone genérico no que atina à responsabilidade patrimonial, comumente chamada de responsabilidade civil.
2. Nada há de estranhável em que estes ditames normativos, embora topograficamente alojados no Código Civil (LGL\2002\400), sejam havidos como princípios ou como regras que transcendem a restrita esfera desta província jurídica, para se qualificarem como disposições aplicáveis integralmente em distintos ramos do Direito. Com efeito, de um lado, inúmeras disposições residentes naquele diploma concernem ao vestíbulo dos vários segmentos do Direito, isto é, assistem no patamar comum aos diferentes ramos em que ele se espraia; de outro lado, no Código Civil (LGL\2002\400) há múltiplos artigos explícita e especificamente voltados para a regência de questões de direito público, notadamente de direito administrativo. Estas são observações · cediças e que já foram expendidas e profundadas por autores da máxima suposição. Sobre isto, o eminente Seabra Fagundes, em clássico sobre o tema, averbou: “Os princípios gerais expressos no Código Civil (LGL\2002\400) são também valiosos para o Direito Administrativo. O ordenamento sistemático e completo de preceitos gerais, traduzidos em linguagem sempre escorreita e as mais das vezes precisa, fazem tais preceitos de grande préstimo para a urdidura e o desate das relações entre Administração e administrado. Aliás, somente por circunstâncias de fundo histórico os princípios genéricos do direito escrito se situam nos textos do Direito Civil, pois como diz Ernesto Forsthoff, são eles, em essência, pertinentes. também, às relações disciplinadas Direito Administrativo”. De seguida, reportando-se às normas dispostas na Lei de Introdução e na Parte Geral, aduziu: “Tais normas, pelo cunho de generalidade, que as faz de e comum a vários setores do direito escrito, e não apenas ao direito civil, antes deveriam constituir a lei dos princípios gerais, abrangedora das relações jurídicas disciplinados por quaisquer dos ramos da legislação” (''Da Contribuição do Código Civil (LGL\2002\400) para o Direito Administrativo”, in RDA 68/6). Assim, o preceito segundo o qual fica obrigado a indenizar o agravado quem lhe ferir direito, causando dano deliberadamente, ou por negligência, imprudência ou imperícia, não é regra apenas de direito civil. É cânone da geral do Direito e por isso também se aplica no âmbito do direito administrativo.
3. Para que tão basilar princípio estivesse eludido na seara do direito administrativo seria necessário regra que explícita e incontrovertivelmente o negasse ou lhe modificasse a compostura. Donde, tirante a hipótese de disposição cujo teor seja inequívoco em afastar a responsabilidade do agente do dano ou que, de modo incontendível, interdite ao lesado proceder diretamente contra o indivíduo responsável pelo comportamento danoso, haver-se-á de concluir que os funcionários públicos respondem com o próprio patrimônio, perante o agravado, se lhe houverem causado prejuízo mediante conduta contrária ao Direito. Estas assertivas, por límpidas e confortadas em bases tão relevantes, hão de se reputar pacíficas, livres de questionamento. Aliás, na tradição do Direito, antes de se pôr princípio geral da responsabilidade do Estado, já era assente a responsabilidade do funcionário que houvesse agido mal, lesando o administrado. Ou seja: a pessoa estatal poderia escapar à responsabilização; não, porém, o agente direto do dano, aquela pessoa cuja conduta injurídica agravasse terceiro ao desempenhar funções públicas. Veja-se, a respeito, exemplificativamente, para .a Inglaterra, Maria Graeiriz (Responsabilidad del Estado, Eudeba, 1969, p. 123) e H. R. Wade (Diritto Amministrativo Inglese, Giuffre, 1969, p. 371); para os Estados Unidos da América do Norte, Frank Goodnow (Les Príncipes du Droit Administratif aux États-Unis, Giard et E. Breire, 1907, p. 454) e John Clarke Adams (El Derecho Administrativo Norteamericano, Eudeba, 1964, p. 84); para a Alemanha, Fritz Fleiner (lnstituciones de Derecho Administrativo, Ed. Labor, p. 222) e Ernst Forsthoff (Traité de Droit Administratif Allemand, Établissements E. Bruylant, 1969, pp. 463 e ss.); para a França, Francis Paul (Le Droit Administratif Français, Dalloz, 1968, pp. 178 e ss.) e Jean Rivero (Droit Administratif, Dalloz, 2.ª ed., 1962, pp. 236-237).
4. Por certo, a garantia de reparação do lesado através do patrimônio do funcionário causador do dano não dá ao administrado toda a proteção necessária acobertá-lo contra agravos que possam resultar da ação do Poder. Isto por uma tripla razão a seguir esclarecida. Em primeiro lugar, porque, assaz de vezes, o agente público não disporá de patrimônio suficiente para responder pelo montante do dano. O vulto dos prejuízos que a atuação estatal pode causar. em vários casos. excederá as possibilidades de suprimento comportadas pelo patrimônio do funcionário. Em segundo lugar, a responsabilidade do funcionário cifra-se às hipóteses em que este haja atuado com dolo ou culpa, seja esta por negligência, imprudência ou imperícia, implicando violação do Direito. Ora, nem sempre o gravame econômico lesivo aos direitos do administrado resultará de conduta estatal (comissiva ou omissiva) na qual se possa reconhecer, individualmente, um específico ou alguns específicos agentes, como causadores do evento lesivo. Com frequência estar-se-á perante situação em que mais não se poderá dizer senão que o serviço estatal, em si mesmo, falhou por haver procedido abaixo dos padrões que seria lícito dele esperar, disto resultando o dano sofrido. Vale dizer, o próprio serviço como um todo é que haverá tido, por negligência, imprudência ou imperícia, um desempenho insatisfatório, causador da lesão ao bem juridicamente protegido do sujeito agravado. Em casos que tais - e serão legião - o administrado ficaria a descoberto por não ser, obviamente, engajável a responsabilidade de algum ou alguns específicos funcionários. Demais disso, em uma terceira hipótese reproduzir-se-ia situação em que o administrado ficaria desvalido. É o caso de danos nos quais um bem juridicamente protegido é lesado pelo Estado, ainda que sem o intuito de fazê-lo, mediante comportamento lícito, cauto, diligente, irrepreensível. Pense-se em atos jurídicos ou em atos materiais da seguinte compostura: Fechamento do perímetro central da cidade a veículos automotores, determinado com base em lei e por razões de interesse público incontendível (salubridade pública, tranquilidade pública, ordem pública), e que acarreta, inevitavelmente, seríssimo gravame patrimonial aos proprietários de edifícios-garagem, edificados e licenciados, inclusive para a correspondente exploração econômica na área interditada à circulação dos citados veículos; nivelamento de rua que, pelas características físicas do local, resulta, de modo inexorável, em ficarem edificações marginais ao seu leito em nível mais elevado ou em nível inferior a ela, inobstante realizada a obra com todos os recursos e cautelas técnicas, causando, destarte, depreciação significativa aos prédios lindeiros afetados, além de acarretar insuperáveis incômodos a sua utilização. Situações deste jaez, como é claro a todas as luzes, demandam recomposição patrimonial do lesado, para que não seja ferido o preceito isonômico, exigente de igualitária repartição dos encargos públicos. B bem de ver que a simples responsabilidade do funcionário, cabível tão-só quando identificável conduta sua contrária ao Direito, por comportamento deliberado ou por negligência, imprudência ou imperícia, de nada serviria para enfrentar estas hipóteses, posto que não estariam em pauta as condições suscitadoras de seu engajamento.
5. A fim de que os administrados desfrutassem de proteção mais completa ante comportamentos danosos ocorridos no transcurso de atividade pública — e não a fim de proteger os funcionários contra demandas promovidos pelos lesados — é que se instaurou o princípio geral da responsabilidade do Estado. Ou seja: a difusão e acatamento, nos vários países, da tese da responsabilidade estatal objetivou e significa tão-só a ampliação das garantias de indenização em favor dos lesados. Nada traz consigo em favor do funcionário e muito menos em restrição ao administrado em seu direito de demandar contra quem lhe tenha causado dano. Em suma: a exposição de um patrimônio sempre solvente, como o é o do Estado, e bem assim a abertura do campo mais largo à responsabilização, nada tem a ver com qualquer propósito de colocar os funcionários públicos à salvo de ações contra eles intentáveis pelos agravados patrimonialmente em decorrência de atos contrários ao direito. Tanto isso é exato, tanto são estranhas as duas questões – responsabilidade do Estado e proteção ao funcionário contra ações intentáveis por terceiros – que os vários sistemas jurídicos, quando desejaram beneficiar os agentes públicos com este resguardo, fizeram-no explicitamente e de· maneira bem conhecida, antes mesmo de ser acolhida a tese da responsabilidade do Estado, o que demonstra a independência entre os dois tópicos. É notório que no passado existiu, em distintos países, uma chamada “garantia administrativa dos funcionários”. Por força dela, estes só poderiam ser acionados em decorrência de comportamentos vinculados a suas funções, se houvesse prévia concordância do Estado. Disposição deste teor, como é notório, existia na Constituição Francesa do ano VIII (art. 75) e prevaleceu até 1870, quando foi derrubada por um decreto-lei de 18 de setembro, época em que a ida Constituição não mais estava em vigor, mas o dispositivo sobrevivia com força de lei, nos termos da concepção francesa, segundo a qual normas Constitucionais compatíveis com a superveniente Constituição persistiam com vigor de lei ordinária (cf. ao respeito Francis Paul Benoit, Droit Administratif, Dalloz, 1968, pp. 718-719). Houve, igualmente, preceitos análogos na Alemanha, nas legislações da Prússia, da Baviera e de Baden e Hesse, como noticia Forsthoff. Tambéma Espanha conheceu regramento análogo e que haveria de perdurar até 1879 (cf. Eduardo Garcia de Enterría - Curso de Derecho Administrativo, Civitas, 2.ª ed., 1981, vol. II, p. 327). Não é difícil concluir que se a responsabilidade do Estado não veio para escudar o funcionário em face de demandas que os lesados almejassem propor contra eles mas, como é de todos sabido, para ampliar a proteção aos administrados, não faz qualquer sentido extrair de regra defensora dos direitos dos agravados a conclusão de que lhes é interdito proceder contra quem, violando o direito, foi o próprio agente do dano.
6. Isto posto, vejamos se ao lume do nosso Direito devem-se reputar absolvidas as regras dos arts. 159 e 1.518 do CC (LGL\2002\400), no que tange à relação entre o funcionário público e o administrado por ele lesado, em face das disposições sobre a responsabilidade estatal. Reafirma-se, neste passo, que as aludidas disposições do Código Civil (LGL\2002\400) são, em rigor de verdade, autênticas normas sagradoras de princípios da teoria geral do Direito. Antes do advento do Código Civil (LGL\2002\400) inexistia regra estabelecendo responsabilidade do Estado. Havia tão-só preceptivos estatuindo responsabilidade dos servidores do Estado por atos lesivos a terceiros. A Constituição de 1824, em seu art. 178, 29 e a Constituição de 1891, no art. 82, estabeleciam apenas a responsabilidade dos “empregados públicos” (na expressão da primeira delas) e dos funcionários públicos (na linguagem da segunda), “por abusos e omissões”, bem como os dos superiores que, por indulgência, não responsabilizassem os subalternos. É bem verdade que, nada obstante, entendia-se haver responsabilidade solidária do Estado, como anota Pimenta Bueno (Direito Público Brasileiro, Rio, 1850, §§ 602 e 603).
7. Foi o Código Civil (LGL\2002\400), em seu art. 15, que consagrou normativamente a responsabilidade do Estado, dispondo: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito o faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”. Posteriormente, a Constituição de 1934, no art. 171 e ade1937, no art. 158, em dispositivos idênticos, estatuíram: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos”. Note-se que vigorou, até então, a tese da responsabilidade subjetiva do Estado, ou seja, vinculada à ideia do dolo ou culpa.
A partir da Constituição de 1946, por força de seu art. 194, ingressa em nosso sistema normativo a responsabilidade objetiva, pois, tal como ocorreria com os textos constitucionais ulteriores - de 1967 e de 1969, respectivamente em seus arts. 105 e 107 - deixou-se de fazer qualquer menção a “procedimento contrário ao direito” ou a “negligência”, “abuso”, etc. Contentaram-se os novos dispositivos em se referir a “danos que os seus funcionários nessa qualidade causem a terceiros” ou “causarem”, como consta da Carta de 1969 (dita Emenda 1 à “Constituição de 1967”). Em suma: ocorreu uma claríssima evolução. De início, só estava prevista a responsabilidade dos funcionários, tal como ocorria nos direitos alienígenas. Ao depois, aceitou-se a responsabilidade do Poder Público, em sua modalidade subjetiva. Finalmente, desde 1946, consagra-se — e no próprio texto Constitucional — a admissibilidade da responsabilidade objetiva. É evidente que o ciclo evolutivo teve em mira a ampliação do resguardo do administrado pois lhe veio proporcionar a busca de reparação econômica em casos que não seriam acobertáveis pela simples responsabilidade dos funcionários. Além disso, trouxe-lhe a garantia de um patrimônio sempre solvente. Esta evolução, insista-se, nunca almejou senão estes resultados. Não há, pois, como pretender atrelar a ela uma presumida intenção de colocar os funcionários numa redoma, tornando-os intangíveis pelos particulares lesados.
8. O atual texto impositivo do princípio geral da responsabilidade do Estado substancia-se no art. 107 da Carta do País. Estes são seus dizeres: “As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”. Que se lê no sobredito regramento? Que estatui ele? Tão-só e unicamente que o Poder Público responderá pelos danos causados pelos funcionários, enquanto tais, e que ficam sujeitos à ação de regresso promovida pelo Estado, se agiram com dolo ou culpa. Outorga-se aí, ao particular lesado, um direito contra o Estado, o que evidentemente não significa que, por tal razão, se lhe esteja retirando o de acionar o funcionário. A atribuição de um benefício jurídico não significa subtração de outro direito, salvo quando com ele incompatível. Por isso, como bem observou o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, a vítima pode propor ação contra o Estado, contra o funcionário, à sua escolha, ou contra ambos solidariamente, sendo certo que se agir contra o funcionário deverá provar culpa ou dolo, para que prospere a demanda (Princípios Gerais de Direito Administrativo, Forense, vol. II, 1974, pp. 481 e 482). De outra parte, o parágrafo único do art. 107 outorga, ao Estado, direito de regresso contra o funcionário que agiu dolosa ou culposamente. Este preceito é protetor do interesse do Estado. Prevê forma de seu ressarcimento pela despesa que lhe haja resultado da condenação. Também nele nada há de proteção ao funcionário. A indicação da via pela qual o Poder Público vai se recompor não é indicação, nem mesmo implícita, de que a vítima não pode acionar o funcionário.
9. Por isso discordamos do entendimento de Hely Lopes Meirelles que extrai dos preceitos em causa vedação a que o lesado acione o agente público (Administrativo Brasileiro, Ed. RT, 10.ª ed. atualizada, 1984, p. 538). Não nos parece de boa técnica interpretativa atribuir a uma norma dicções que nela não se contêm ou ler nela o que ali não está escrito. Tal procedimento é sobremodo vitando quando implica erigir sobre dada regra uma regra de conteúdo diverso e estranho aos propósitos que engendraram a norma da qual se quer sacar outras consequências além das estatuídas. Daí havermos, de outra feita, averbado: “Entendemos que o art. 107 e seu parágrafo único não tem caráter defensivo do funcionário. A cabeça do artigo visa proteger o administrado, oferecendo-lhe um patrimônio sempre solvente e a possibilidade da responsabilidade objetiva em muitos casos. Daí não se segue que haja restringido sua possibilidade de proceder quem lhe causou dano. Sendo um dispositivo protetor do administrado dele extrair restrições ao lesado. A interpretação deve coincidir com o sentido para o qual caminha a norma, ao invés de sacar dela conclusões que caminham na direção inversa, benéfica apenas ao presumido autor do dano. A seu turno, o parágrafo único, que prevê o regresso do Estado contra o funcionário responsável, volta-se à proteção do patrimônio público. Daí, na cabeça do artigo e em seu parágrafo só há preceptivos volvidos à defesa do administrado e do Estado, não se podendo vislumbrar intenções salvaguardadoras do funcionário. A circunstância de haverem acautelado os interesses do primeiro e do segundo não autoriza concluir que acobertaram o agente público, limitando sua responsabilização ao caso de ação regressiva movida pelo Poder Público judicialmente condenado” (Ato administrativo e Direitos dos Administrados, Ed. RT, 1981, pp. 168-169). De resto, entendimento contrário ao que esposamos, sobre não trazer em seu abono qualquer interesse público que o justifique, acarreta, pelo contrário, consequência antinômica a ele. É que o Poder Público dificilmente moverá a ação regressiva, como, aliás, os fatos o comprovam de sobejo. Tirante casos de regresso contra motoristas de veículos oficiais — praticamente os únicos fustigados por esta via de retorno — não se vê o Estado regredir contra seus funcionários. Diversas razões concorrem para isto. De fora parte o sentimento de classe ou de solidariedade com o subalterno (já de si conducente a uma contenção estatal na matéria), assaz de vezes o funcionário causador do dano age incorretamente com respaldo do superior, quando não em conluio com ele ou, pelo menos, sob sua complacência. É lógico que este não tem interesse em estimular a ação regressiva que poria a nu sua responsabilidade conjunta. Demais disso, ao ser acionado, o Estado sistematicamente se defende — e é esta mesma sua natural defesa — alegando não ter existido a causalidade invocada e haver sido absolutamente regular a conduta increpada, por isenta de qualquer falha, imperfeição ou culpa. Diante disto, é evidente que, ao depois, em eventual ação de regresso, enfrentará situação profundamente constrangedora e carente de qualquer credibilidade, pois terá de desdizer-se às completas, de renegar tudo o que dantes disse e proclamar exatamente o oposto do que afincadamente alegara. A consequência é a impunidade do funcionário, seja porque depois de o Estado haver assentado uma dada posição na ação de responsabilidade fica impedido de mover a ação de regresso, seja porque, se o fizer, topará com o que havia previamente estabelecido e que agora milita contra si próprio e em prol do funcionário, convertendo-se em robusta defesa deste último, de tal sorte que Poder Público no pleito anterior prepara de antemão sua derrota na lide sucessiva. Estas são as razões pelas quais, tirante o caso dos humildes motoristas de veículos oficiais, praticamente funcionário algum é molestado com ação regressiva. Pode confiar que ficará impune, mesmo quando negligente. Não precisa coibir-se de abusos e até de atos dolosos lesivos aos administrados. O Estado pagará por ele. A solidariedade de classe ou o comprometimento dos superiores com os superiores inquinados de viciosos (quando menos por complacência), a ingratidão da posição do Estado na duplicidade de ações, pois nelas terá de adotar posturas antagônicas, garantem ao funcionário a não desmentida expectativa de escapar a ações regressivas.
10. Assim, sobre nada existir que justifique juridicamente a imunização do funcionário contra pleitos intentados pelos lesados, tudo concorre para admitir o cabimento de tais ações. Tanto razões de interesse público como razões de direito estrito falam em favor delas. Consoante inicialmente se disse, para que houvesse elusão da regra geral de direito que impõe a responsabilidade direta daquele que, violando a ordem jurídica, causou dano a outrem, seria preciso que existisse norma absolutória suprimindo sua positividade de modo claro e inequívoco. Conforme visto, nada há neste sentido. Daí que o Supremo Tribunal Federal, no RE 90.071, publicado na RDA 142/93, de out.-nov./1980, frisou com hialina clareza esta conclusão, assim sintetizada na ementa do Acórdão: “O fato da Constituição prever direito regressivo contra o funcionário responsável pelo dano não impede que este último seja acionado conjuntamente com a pessoa jurídica de direito público, configurando-se típico litisconsórcio facultativo”. O Relator, Min. Cunha Peixoto, averbou com absoluta precisão: “E a interpretação do dispositivo constitucional, no sentido de permitir, facultativamente, admissibilidade da ação também contra o funcionário, autor do dano, sobre não acarretar nenhum prejuízo, quer à administração, seja ao funcionário, mais se coaduna com os princípios que disciplinam a matéria. Isto porque a administração, sobre não poder nunca isentar de responsabilidade a seus servidores, vez que não possui disponibilidade sobre o patrimônio público, não se prejudica com a integração do funcionário na lide, já que a confissão dos fatos alegados pelo autor, por parte do funcionário, afetaria sua defesa, e não da administração, cuja responsabilidade se baseia na teoria do risco administrativo. Ao funcionário interessa intervir na ação, não só para assegurar o justo valor da indenização, como também para evitar as despesas de dois processos: o mviido contra a administração e a defesa contra ele. A letra e o espírito do art. 107, que reproduz o art. 194 da Constituição de 1946 e art. 105 de 1967, permitem a participação no processo, do funcionário que o Poder Público, executado por ato de seu representante, lesivo a terceiro, tem direito de exigir, diante do princípio de regressividade, do autor do dano, aquilo que pagou ao prejudicado”. É de ressaltar igualmente a concisa e exata fundamentação do voto do Min. Décio Miranda: “Sr. Presidente, o art. 107, e respectivo parágrafo único, da Constituição atual não revogaram o art. 159 do Código Civil (LGL\2002\400). Estes dispositivos, aliás, já vêm das Constituições anteriores, afirmam a responsabilidade objetiva do Estado, mas sem modificar em nada a responsabilidade em razão da culpa, que se possa increpar ao agente do Estado. Estou de acordo com o Relator, conhecendo o recurso e lhe dando provimento”. Isto posto, procede concluir que o sujeito lesado por conduta de funcionário público negligente, imprudente, imperito ou doloso em sua atuação, pode ser acionado pela vítima, que agirá apenas contra ele ou contra ele e o Estado, solidariamente, em litisconsórcio, a menos que deseje acionar tão-só o Estado.