Melo, Francisco Dênis, und Edvanir Maia da Silveira. Nas trilhas do sertão: escritos de cultura e política do Ceará – volume 7. SertãoCult, 2022. http://dx.doi.org/10.35260/54210157-2022.
Annotation:
Como será o lugar quando ninguém passa por ele? – pergunta o poeta. Será que “Existem coisas sem ser vistas?” E o mundo, mundo grande, como escreveu, pode existir “apenas pelo olhar que cria e lhe confere espacialidade?” O poeta parece querer nos dizer que “Aquilo que vemos vale – vive – apenas por aquilo que nos olha”, 1 que ver é experimentar ser visto, que ser visto é existir, e ainda que haja uma “cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”, 2 as coisas, os acontecimentos só têm existência na medida mesma de nossa presença, de nossa potência visual, de nosso corpo que toma e encorpa o espaço, o tempo e gera existência e resistência, presença e ausência, o antes e o depois, a perda e a insistência. Duas dimensões importantes de parte significativa da poética de Carlos Drummond de Andrade são a memória e a questão da finitude, que se manifestam em resíduos de memórias e de espaços familiares. A dimensão da finitude, em especial, faz com que o poeta some inúmeras questões em forma de perguntas à sua poética, como lemos na passagem do poema supracitado. Esse dado é importante porque denota a provisoriedade e a fragilidade das respostas possíveis elaboradas no corpo dos próprios poemas. O poeta não tem respostas para todas as perguntas que faz. Os historiadores também não têm respostas para todas as questões que levantam em suas pesquisas, em suas aulas, cursos, intervenções. Por isso, com relação a Drummond, parte de sua poesia é metapoesia. Nesse sentido, somos levados a nos perguntar se a escrita do Historiador não seria meta-história, ou seja, o “estudo referente à história enquanto historiografia; por exemplo, o estudo da linguagem, ou linguagens, da historiografia”? 3 Assim, dessa forma, elaboramos histórias que ajudam na construção de outras histórias? Cada um dos autores desta coletânea conhece o lugar por onde passam, porque sua prática é constituída por um demorar-se em suas temáticas, pela identificação e reflexão sobre problemas e questões, portanto, o desejo é que nada permaneça fora do alcance de sua vista, o que garante para cada um a criação e configuração de certa espacialidade e temporalidade fundamentais com relação às pesquisas abordadas. Evidentemente que demorar-se e conhecer-se, nas temáticas levantadas, não isenta todos, todas e cada um de certa estranheza e inquietação marcadas exatamente pelas respostas impossíveis de serem encontradas, assim é que a familiaridade com a temática não garante, e jamais garantirá, a tranquilidade de um “sentir-se em casa”, o que até certo ponto é bom, na medida em que nos coloca sempre em estado de alerta para o que até então não foi visto, alcançado, sentido como presença em variados tempos e espaços, e que esperam de nós inteligibilidade na busca, a um só tempo, pelo todo e as partes, como assevera Antoine Proust. Portanto, nada é suposto na existência, isso porque, como escreve o poeta, “Ou tudo vige planturosamente, à revelia/ de nossa judicial inquirição / e esta apenas existe consentida/ pelos elementos inquiridos?”, posto que o que vigora na existência, mesmo à revelia de nossa mais cuidadosa inquirição, o que garante as nossas questões, são as próprias questões, e não o que está fora, o que não faz parte das problemáticas levantadas, e é exatamente nessa “espantosa batalha/ entre o ser inventado/e o mundo inventor” que nos colocamos e nos demoramos. Somos “ficção rebelada/ contra a mente universa”, levantando a alvenaria de nosso lugar, de nosso estranho lugar, de nossa morada, lugar de uma certa permanência que nos ampara e nos sacode ao mesmo tempo. Assim, abrimos nossas trilhas em seu sétimo volume. Trilhas são caminhos ou estradas, existentes ou estabelecidos, com dimensões e formas, comprimento e largura diferentes, aptos a aproximar, juntar, estabelecer espaços de interação, indicar, duvidar, marcar, apontar direções, ligar, sinalizar, abrir passagens. Entre as inúmeras trilhas abertas sertões afora e cidades adentro, nós abrimos as nossas, dispomos nossos passos, medimos as dificuldades do terreno e nos lançamos nessa caminhada que já dura tantos anos, deixando fincados nas terras por onde passamos, marcos e marcas, impressões e signos, sinais e símbolos, partes de cada de um nós, como um olhar lançado, que confere e configura tempos e espacialidades. O presente volume divide-se em duas partes, respectivamente: “História, memória, autoritarismo e militância política no século XX” e “Experiências citadinas e sertanejas, oralidade e tradição nos sertões do Ceará nos séculos XIX e XX”. Na primeira parte do livro, abrimos nossos trabalhos com o capítulo de Jucelio Regis da Costa, “Da construção a celebração do golpe de 1964 no Ceará: usos políticos de elementos neomedievalizantes”, que faz uma análise de acontecimentos nacionais da década de 1960, com profundas repercussões no Ceará, como as Cruzadas do Rosário em Família, a Missa congratulatória às Forças Armadas e as Marchas da Vitória, com ampla mobilização política de grupos conservadores do estado, com a finalidade de combater o comunismo, servindo assim “na pavimentação do caminho ao golpe civil-militar de 1964”. O autor elege como objeto central de sua análise elementos neomedievalizantes, quando sentidos positivos foram atribuídos à Idade Média e os acontecimentos em questão foram medievalizados. Edvanir Maia da Silveira, em “Os partidos políticos e a experiência democrática na Zona Norte Cearense (1945-64)”, discute como as décadas de 1945 a 1964 consagraram-se na historiografia como tempo da experiência democrática, em que vigorava uma Constituição, partidos, eleições e participações sociais no debate político, sem, no entanto, descurar do fato de que muitas práticas autoritárias estavam presentes e ativas no cenário político, de modo que essas experiências e conflitos foram vivenciados e ressignificados pelas lideranças da Zona Norte do Ceará. O capítulo assinado por Viviane Prado Bezerra, “‘Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a participar das coisas, então ela começa a ver o mundo diferente’: trabalho pastoral e atuação política das camponesas no Movimento do Dia do Senhor (1970-1990)”, aborda a militância religiosa e política de mulheres camponesas no Movimento do Dia do Senhor, uma iniciativa católica que tinha relação com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e que teve intensa atuação entre as décadas de 1960 e 1990 alimentada pela dimensão da “fé e vida”, modificando “a visão de mundo e atuação dessas mulheres em suas comunidades”, tornando-as “protagonistas na luta pela libertação, posse da terra e pela igualdade de gênero”. No último capítulo da primeira parte, “Cem anos de comunismo no Brasil: onde Camocim entra nessa história?”, de Carlos Augusto Pereira dos Santos, o autor discute, dentro das comemorações dos cem anos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), agora em 2022, a participação da cidade de Camocim nessa longa história, utilizando como documento uma entrevista realizada com o “Sr. Nilo Cordeiro de Oliveira, comunista histórico em Camocim, filho de Pedro Teixeira de Oliveira (Pedro Rufino), um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Camocim em 25 de março de 1928”. Voltando à trilha poética aberta por Carlos Drummond de Andrade, tomando o caminho dA suposta existência, pensamos se “A guerra sem mercê, indefinida, prossegue, feita de negação, armas de dúvida […]teima interrogante de saber/ se existe o inimigo, se existimos/ ou somos todos uma hipótese/ de luta/ ao sol do dia curto em que lutamos”, e se a nossa luta se faz e se refaz em cada página escrita, em cada aula debatida, em cada projeto realizado, uma vez que, se a pressa existe, é porque sabemos que um dia é muito curto para quem luta. Por isso a soma de todos nós, a multiplicação de nossas pesquisas, a publicização tão importante de nossas inquietações. Na segunda parte do livro, Francisco Dênis Melo, a partir do capítulo “Sobral e os seus altares: imaginária urbana e heróis civilizadores”, tem como objetivo “pensar a cidade de Sobral-CE a partir de alguns de seus habitantes de pedras, ou melhor, de sua imaginária urbana, no caso bustos, estátuas e monumentos destacados em variados espaços, notadamente em suas praças”, que funcionaram e ainda funcionam como anteparo para os campos políticos e religiosos na cidade, constituindo assim um poderoso mecanismo simbólico de construção do poder em Sobral. Thiago Braga Teles da Rocha, em “‘Sobral como cidade progressista’: entre planos, projetos e representações”, discute o processo de eletrificação em Sobral, estabelecendo uma relação com o conceito de progresso. O texto nos mostra que foi organizada uma “campanha em prol da eletrificação da cidade, realizada por setores da elite política da cidade, com destaque para a Igreja Católica a partir do jornal Correio da Semana”. Para isso, foi utilizado o “Projeto das Redes Primárias e Secundárias de Distribuição de Energia Elétrica da Cidade de Sobral”, documento resguardado no Núcleo de Documentação Histórica (NEDHIS), ligado ao curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú. O capítulo assinado por Antônio Vitorino Farias Filho, “Imagens no espelho: mulher depravada e mulher ideal em Ipu-CE no início do século XX”, discute a questão da prostituição e sua relação tensa com a chamada Modernidade e com os valores do progresso, de modo que a prostituta no espaço público representou “uma imagem invertida da mulher ideal, buscada pelos grupos dominantes”. Chama atenção o autor para o importante fato de que “É somente no início do século XX, mais ainda na década de 1920, na cidade de Ipu, que a prostituta e a prostituição aparecem explicitamente nas fontes”. No capítulo “‘Isso é atestado de seu progresso. Sí Sobral, Camocim e outras cidades sertanejas têm o seu jornal, porque não poderíamos ter?’ a elite escritora e o ideário de controle e modernidade em Ipu-CE (1900-1920)”, Antonio Iramar Miranda Barros e Alexandre Almeida Barbalho discutem a questão da Modernização sob a ótica das lides jornalísticas, a partir das experiências e do “pensamento de três sujeitos, a partir dos grupos aos quais pertenciam: Abílio Martins, Herculano Rodrigues e Leonardo Mota”, entendendo que os jornais eram encarados como sinais claros de progresso, desenvolvimento e inovação. Raimundo Alves de Araújo e Emmanuel Teófilo Furtado Filho assinam o capítulo “O campo de concentração do Ipu no contexto da Revolução de 1930”. Os autores analisam a constituição do campo de concentração na cidade do Ipu no ano de 1932, no contexto de criação de outros campos, em cidades como Quixeramobim, Crato, Cariús, Senador Pompeu e Fortaleza. Os autores refletem que tal acontecimento não tem o reconhecimento e importância para os poderes locais, lamentando “que não haja um marco histórico identificando o local exato do campo de concentração do Ipu, nem um memorial preservando a memória e a história de tão trágico e lamentável acontecimento!” O campo de concentração da cidade do Ipu fazia parte de um projeto maior, que, entre outros objetivos, pretendia “fazer dele uma ‘parede de contenção’ para poupar a cidade de Sobral do assédio dos retirantes”. Nesse sentido, afirmam os autores que “Ignorar este passado horrível é o mesmo que ‘assassinar novamente’ aquelas vítimas”. Na sequência, Cid Morais Silveira, em “‘Os teus filhos, cidade encantada, escondidos no seu coração’: a vida e a morte do Centro Social Morrinhense (1952 – 1963)”, analisa a criação e o fim de uma instituição chamada Centro Social Morrinhense, em 1952, na cidade de Fortaleza, num contexto em que seus fundadores acreditavam que Morrinhos, “uma pequena vila encravada entre o litoral e o sertão, no interior cearense, composta de oito ruas, dois grandes quadriláteros que os moradores chamavam de ‘praça’ e com aproximadamente 1.097 habitantes”, estava “desamparada e abandonada pelo poder público”, objetivando “1º) proporcionar as melhores ocasiões de progresso àquela vila; 2º) levantar o nível social de seus habitantes; 3º) auxiliar os estudantes pobres do distrito; 4º) promover campanha sobre assuntos dos mais variados: educação, cultura, escolas, alfabetização de adultos, agricultura e outros problemas locais”. Joaquim dos Santos, no capítulo “‘Nas porteiras’ de outros mundos: a Pedra Branca na tradição oral”, encontrou uma pedra em seu caminho. Por isso reflete “sobre o lugar da Pedra Branca na tradição oral sobre os mortos na região do Cariri, dando destaque às memórias sobre a grande rocha e os significados que lhe são atribuídos pelos moradores das áreas próximas ao rochedo”. Aponta o autor que “a Pedra Branca está localizada no sítio Jatobá, na encosta da Chapada do Araripe, zona rural do município de Porteiras”. Ele enfatiza ainda que na “relação entre as pedras e as almas nos interiores do Brasil, é notório como seus laços são estreitos e porosos, tanto no que diz respeito às pedrinhas, quanto aos grandes rochedos”. Fechando a segunda parte e a obra, temos o capítulo de Reginaldo Alves de Araújo, “Vamos falar sobre um sertão? Do sertão dos párias incultos ao culto à pátria”, no qual o autor analisa “algumas variações de sentido da palavra sertão em diferentes momentos históricos”, atentando para o fato de que vai deixar “de lado a ideia de sertão como sinônimo de seca e de fome […] para nos concentrarmos em outras duas imagens: a de um espaço não civilizado no contexto colonial, ao sertão enquanto reservatório das raízes culturais da nacionalidade brasileira”. Entende o autor o sertão como um espaço plural e simbólico, material e sensível, sendo entendido também como um espaço de resistência renhida ao colonialismo. Voltando à trilha aberta por Carlos Drummond, no poema A suposta existência, nos diz o poeta: “[…] e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início […]”. O ser do poeta é parte remontada, refeita, ressignificada com a matéria da vida, com o espanto de todo dia. Ser reconstrução é sonhar ser outro a cada instante, apesar da cólica, do gemido. O que há, de fato, para se construir novo a cada instante, é uma multiplicidade de caminhos, de trilhas, de sendas abertas. O poeta nos mostra novos caminhos, assim como historiadores e historiadoras também apontam em seus trabalhos para o múltiplo das coisas, da vida, dos acontecimentos. E se uma das características da obra poética de Drummond é o “princípio-corrosão”, nas palavras de Luiz Costa Lima, nas obras dos historiadores temos, certamente, o “princípio-reflexão”, quem sabe, de forma mais ousada, o “princípio-coração”… Boa caminhada! Boa leitura! Francisco Dênis Melo